(Sobre “Um, nenhum e cem mil” – de Luigi Pirandello)
Até onde você está disposto a ir, quando mergulha em seus
pensamentos e reflete sobre sua vida, sua identidade e um sentido para suas
experiências?
Intuo que todos nós temos esses momentos filosóficos pessoais.
É uma necessidade, como dormir e comer. Melhor, é um automatismo, como o pulsar
de nossos corações. Temos esta impressão de que somos únicos e especiais, ao
garimparmos boas ideias em nosso íntimo, ao mesmo tempo que ansiamos por ver
essas ideias também descobertas por outros. Ficamos felizes quando as vemos confirmadas
nas palavras de alguém que respeitamos, ou nas páginas de um livro.
Uma epifania está lá, espreitando no escuro, para te pegar no
momento entre a vigília e o sono, ou ensaboado no banho, entre as falas de uma
aula, num copo de vinho, ou observando
as faixas na estrada. É como se distraídos
pudéssemos acessar uma prateleira com informações que sempre estiveram lá, mas
por alguma razão permaneciam empoeiradas, aguardando que explorássemos seu
conteúdo.
Algumas dessas ideias que construímos, tenho a impressão,
não evoluirão até mais do que simples sensações ou certezas, difíceis de
traduzir em palavras. Quando tentamos fazê-lo, parecem perder seu charme, sua
sabedoria se esvai, fugidia – ou pior, tornam-se errôneas, incompletas. Outras
vezes, nos vemos chegando a conclusões já conhecidas e expressas por outros,
com uma sensação de que chegamos a ela de um jeito novo, e que ao invés de
termos andando em círculos, traçamos um espiral, revisitando ideias num nível
acima do anterior, renovados por alguma mudança que sua chama produziu em nós.
Neste livro, o personagem descobre, a partir de um inocente
comentário da esposa, que não é quem pensa que é. Ou melhor, que é para cada um
que o vê uma pessoa diferente. Impotente diante da construção que os outros
fazem de si. Esta descoberta evolui com as páginas do livro, com implicações
enormes em sua vida.
Luigi Pirandello faz este mergulho sem qualquer rede de
segurança. Olha para a escuridão confiante, como se soubesse de antemão ser
capaz de lidar com quaisquer perigos que saíssem dali. Mais que isso, convence-nos que não é ele
próprio (o autor) quem faz este percurso, mas seu personagem principal. Podem
imaginar como é fascinante ser testemunha dessa façanha? Ler o destrinchar de pensamentos
complexos, traduzindo-os na experiência e contexto de seu personagem,
convencendo-nos que não se trata dele próprio? Dar a esta divagação ritmo
suficiente para que possamos acompanha-lo, e ao mesmo tempo sermos
surpreendidos ou uma ou outra decorrência desta ideia inicial.
Achei fantástico. Virei fã, e sem dúvida procurarei outros
livros do autor.
Trecho Selecionado:
- Porque para se ver é preciso
fechar a vida em um átimo. Como diante de uma máquina fotográfica. A senhora
assume uma pose. E posar é como se tornar uma estátua por um momento. A vida se
move continuamente, e nunca pode ver a si mesma.
- Quer dizer que eu, viva, nunca
me vi?
- Jamais como eu posso vê-la. Mas eu vejo uma imagem da senhora que é só minha – uma imagem que certamente não é a sua. A sua, viva, a senhora talvez a possa ter vislumbrado em alguma foto instantânea que lhe fizeram. Mas sem dúvida deve ter tido uma ingrata surpresa. Talvez tenha até relutado em se reconhecer naquela imagem descomposta, em movimento.
- Jamais como eu posso vê-la. Mas eu vejo uma imagem da senhora que é só minha – uma imagem que certamente não é a sua. A sua, viva, a senhora talvez a possa ter vislumbrado em alguma foto instantânea que lhe fizeram. Mas sem dúvida deve ter tido uma ingrata surpresa. Talvez tenha até relutado em se reconhecer naquela imagem descomposta, em movimento.
- É verdade.
- A senhora só pode
reconhecer-se posando: estátua sem vida. Quando alguém vive, vive sem se ver.
Conhecer-se é morrer.
(...)
Estou certo de que ela, assim como eu, depois daquela fala e de tudo o que já lhe dissera sobre o tormento do meu espírito, experimentou naquele exato momento a sensação de ver abrir-se à sua frente, desmesurada e tanto mais pavorosa quanto mais lúcida, a imagem de nossa irremediável solidão.
Estou certo de que ela, assim como eu, depois daquela fala e de tudo o que já lhe dissera sobre o tormento do meu espírito, experimentou naquele exato momento a sensação de ver abrir-se à sua frente, desmesurada e tanto mais pavorosa quanto mais lúcida, a imagem de nossa irremediável solidão.
(...)
Todo o orgulho desmoronava.
Ver as coisas com os olhos que não podiam saber como os outros olhos a
viam.
Falar para não ser entendida.
Não valia mais nada tentar ser alguma coisa para si.
E nada mais era verdade, já que nenhuma coisa era em si verdadeira. Cada
um por sua conta a assumia como tal, apropriando-se dela para preencher a
própria solidão e dar à sua vida uma consistência qualquer, dia a dia.
Vontade de ler, vou procurá-lo já!
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