sábado, 26 de outubro de 2013

Nauseante coragem – A paixão segundo G.H.


(os trechos entre aspas são do livro)

A aba da capa apresentava o pequeno enredo, uma desculpa para a construção de sua filosofia.

 “ Esse esforço que farei agora por deixar subir à tona um sentido, qualquer que seja, esse esforço seria facilitado se eu fingisse escrever para alguém.”

Assunto difícil. Olhar para os olhos vítreos de uma barata, e compreender sua vida, sua passagem fugaz e desimportante pelo tempo – e associá-la ao sentido da vida humana, correlacionando-os no divino.

Enfrentar o desafio de escrever sobre o sentido da vida exige coragem. Especialmente quando se evolui para descobrir sua ausência de sentido, ausência de solo firme. Buscar algo em que se apoiar é como florear nossa existência, atribuindo-lhe propósitos abstratos. Nossa vida passa despercebida diante da vida em seu todo, sejamos baratas, Mozart ou Einsten.

“O perigo de meditar é o de sem querer começar a pensar, e pensar já não é meditar, pensar guia para um objetivo.”

Meditar sem objetivo, mas chegar a um. E ao perceber ter espremido toda a vaidade de sua percepção da vida, apresenta-la como experiência, contra as dificuldades de na língua em expor tal abstração, sem sentir-se envaidecida com o resultado.

“Ou não querer ter vaidade é a pior forma de se envaidecer?”

Mas ao fazê-lo com maestria, mostra sua habilidade de escritora. Como tornar poética a descrição de uma barata esmagada?

“Ela era arruivada. E toda cheia de cílios. Os cílios seriam talvez as múltiplas pernas. Os fios de antena estavam agora quietos, fiapos secos e empoeirados. A barata não tem nariz. Olhei-a, com aquela sua boca e seus olhos: parecia uma mulata à morte. Mas os olhos eram radiosos e negros. Olhos de noiva”


Obrigado, Clarice. Na despedida do livro, vi sua foto na contra-capa. Reparei em sua beleza fria, estrangeira, delicada e rude ao mesmo tempo. Seu olhar também é prenúncio de sua força.

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

O momento do leitor - "A idade da Razão"



Sempre que a leitura de um livro começa a empacar, procuro rever minhas impressões em busca de um “fio” a seguir. Procuro um propósito para o que está escrito ou para a forma como está escrito, peço ajuda na internet buscando por opiniões que forneçam alguma luz, leio uma biografia do autor e algumas resenhas, procuro compreender qual era o mundo em que o livro foi escrito, a que ideias foi exposto o autor.

Alguns livros mostram este “fio” que estimula a leitura ao proporem uma história empolgante, ou visitarem difíceis recônditos da alma humana, ou repisarem uma experiência real ou fictícia para compreendê-la em seus odores e sabores.  Há outros que tentam uma estética ou estilo novos, e há aqueles que não consigo colocar numa dessas categorias, mas que sobrevivem nos pequenos lampejos de genialidade, em trechos bem escritos. Qualquer uma dessas razões já foi suficiente para que eu cumprisse minha promessa (de terminar cada livro que começo), e tirar alguma coisa de bom dos momentos dedicados a um título.

Confesso que demorei a achar esse “fio” no livro de Sartre – “A idade da Razão”, que inicialmente me pareceu apenas um exercício hipotético de suas propostas filosóficas, no caminhar claudicante ( e devo dizer tedioso) da sua personagem principal. Mas seria só isso? Ou eu que achava “só isso”? Por que eu classificaria como “pouco”, poder ler um filosofo reconhecido, nobel de literatura, exercitando suas ideias? Mas a verdade é que minha primeira impressão de “A idade da razão” foi a de um livro cansativo.

Seria o livro? Seria eu? Ambos, provavelmente. Já aconteceu com todo mundo, não gostar de um livro num primeiro contato, e depois saboreá-lo em outro momento da vida. É possível que me falte maturidade como leitor para “A idade da Razão”.  É possível que não seja o momento certo. Sartre é para mim um quebra-cabeças desmontado, e não possuo a foto da caixa. Li sobre seu romance não-monogâmico com Simone de Beuvoir (que fez ela além de ser devassa para os padrões da época e namorada dele?). Vi uma foto dele em Cuba, com Che Guevara e Simone. Sartre que não queria distinções, mas convivia com figuras famosas de sua época. Queria estar “onde as coisas aconteciam”? Uma celebridade num tempo sem paparazzi ou tablóides?

Recomendo como desafio. E humildemente anseio por ajuda – para quem sabe um dia seguir lendo os outros livros que continuam a trama de “A idade da Razão”. Com coragem, acabei encontrando alguma coisa para me interessar, em diferentes trechos, que tento representar nos excertos abaixo:

(ao discutir a possibilidade de um aborto):“ - Deram-me um pacotinho depois da operação e me disseram: “Jogue isso na privada”. Numa privada. Como um rato morto! Mathieu – disse ela, apertando-me fortemente o braço – você não sabe o que vai fazer!
 - E quando a gente põe uma criança no mundo, a gente sabe? – perguntou Mathieu encolerizado. Uma vida! Uma consciência a mais, uma pequena luz perdida , que voaria em círculo, se chocaria contra as paredes e não poderia escapar.”

(ao beijar Ivich – já se sentiu assim ao fazer o primeiro movimento?): “Era amor. Agora era amor. Mathieu pensou: “que foi que eu fiz?” Cinco minutos antes aquele amor não existia; havia entre ambos um sentimento raro e precioso, sem nome, que não se exprimia por meio de gestos. E Eis que ele fizera um gesto, o único que não devia fazer, aliás não o fizera propositadamente, aquilo viera sozinho. Um gesto e aquele amor aparecera diante de Mathieu como um grande objeto importuno e já vulgar. Doravante, Ivich pensaria: “ele é como os outros”, e, a partir daquele momento, Mathieu amaria Ivich como as demais mulheres que amara.”

(numa experiência angustiada) : “Caminhava em silêncio, somente seus passos ecoavam na sua cabeça, como uma rua deserta pela madrugada. Sua solidão era tão total sob aquele céu, acariciante como uma consciência limpa, no meio daquela multidão atarefada, que ele se sentia espantado de existir; ele devia ser o pesadelo de alguém, de alguém que acabaria acordando.”

(UFF...esse momento foi tenso): “Morta a serpente, morre o veneno (...) Apoia a mão na mesa, ela responde à pressão com uma pressão igual, nem mais, nem menos. As coisas são servis. Dóceis. Manejáveis. “Minha mão fará tudo sozinha.” Boceja de angústia e tédio. De tédio mais ainda que de angústia. Está sozinho naquele cenário. Nada o impede de resolver; nada o impede. Tem que decidir sozinho. Seu ato não é senão uma ausência. Aquela flor vermelha entre as pernas não está ali; aquela poça vermelha no soalho não está ali. Olha o soalho. É liso, unido, não tem lugar para mancha. “ Estarei deitado no chão, inerte, a braguilha aberta e melada, a navalha estará no chão, cega, inerte” Contempla fascinado a navalia, o soalho; se pudesse imaginar nitidamente a poça vermelha e o ardor, de um modo suficientemente nítido para que se realizassem por si, sem que precisasse fazer o gesto! “A dor eu aguento. Quero-a, chamo-a. Mas é o gesto, o gesto.”