segunda-feira, 19 de agosto de 2013

A Elegância da Literatura (Do Ouriço)

A Elegância do Ouriço - Muriel Barbery

Comecei-o em doses pequenas – poucas páginas por vez – pois estava terminando outro livro. Pareceu como tarde de degustação de cachaça, que a cada dosezinha vai nos afeiçoando, descendo mais fácil, sensibilizando, abrindo novas visões e sabores, fluindo.

Inicialmente, você tem a impressão de que é sobre a arrogância intelectual, ou sobre a futilidade da vida dos ricos e acadêmicos. As personagens, paradoxalmente, colocam-se arrogantemente num patamar acima desses que criticam, e são amargos, como os que despertaram do cotidiano e se perceberam em meio à vida fútil que a maioria vive.

Consegue então fazer crítica de si próprio: se por um lado valoriza o constante aculturar-se, por outro relativiza sua importância, ao lembrar que o bicho-homem está sempre (no fundo) atrás apenas de sexo e status (para conseguir mais sexo). Reconhece que não há inteligência na escolha por pensamentos infelizes, e esta reveladora conclusão dá ao livro uma dose de humildade que o abrilhanta ainda mais.

Constrói as personagens, nos afeiçoa a suas ideias sobre o sentido da vida, promove deliciosos encontros, e novas conclusões sobre este sentido. Faz-nos sentir como é especial encontrar e empatizar com seres humanos com gostos parecidos, que confirmam nossa visão do mundo, ou a questionam num nível que nos desafia e interessa. Refleti, ao escrever este parágrafo, que é por isto que escrevo minhas resenhas – para encontrar por ai pessoas que enxergam parecido, ou que se deixem instigar pelo que penso, mesmo que anonimamente.

É delicioso como a autora escreve frases profundas, bem elaboradas. Como se tivesse sido escrito por minha irmã, é de uma sagacidade! Cáustico! Sugere livro bem trabalhado, com verdadeiros trechos de “arte”. Vale muito a leitura. Um novo clássico. Diversão garantida que entrou para a lista dos meus preferidos.

Frases selecionadas:

 “...que nada é mais duro e injusto do que a realidade humana: os homens vivem num mundo emq eu são as palavras, e não os atos, que têm poder, em que a competência última é o domínio da linguagem.”

“Quando as linhas se tornam seus próprios demiurgos, quando assisto, qual um milagroso ato inconsciente, ao nascimento no papel de frases que escapam  à minha vontade e que, inscrevendo-se na folha apesar de mim, ensinam-me o que eu não sabia nem acreditava saber, gozo desse parto sem dor, dessa evidência não concertada, que consiste em seguir sem esforço nem certeza, com a felicidade dos espantos sinceros, uma pluma que me guia e me transporta.”


“(...) toda essa vida em que nos arrastamos, feita de gritos e lágrimas, risos, lutas, rupturas, esperanças desfeitas e chances inesperadas: tudo desaparece de repente quando os coristas começam a cantar. O curso da vida se afoga no canto, há uma impressão de fraternidade, de solidariedade profunda, de amor mesmo, e isso dilui a feiura do cotidiano numa comunhão perfeita.”

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Sobre Constantino "Tolstoi" Lievin

Hesitei bastante em começar o “Ana Karênina” (que eu insistia em ler como se o circunflexo lá não estivesse). Volume grande, letras pequenas, difícil manuseio. O nome do autor traduzido “Leão Tolstoi” também não convidava... mas por que tanta unanimidade sobre este clássico? Eu precisava saber.

Foram algumas boas semanas até termina-lo. Não porque fosse chato, pelo contrário. Tolstoi tem grande habilidade para descrever discussões em torno de uma mesa de jantar, e tornar aquilo interessante para nós. Seu artifício é simples – típico dos romances psicológicos. O autor faz a gente entrar na cabeça das personagens. A construção das respostas e pensamentos são muito boas. Em especial na descrição das duplas amorosas, uma percepção destacada que o autor tem do universo feminino (e ainda bastante atual – quando se trata de sentir-se aceita ao conseguir um parceiro).

Há ainda um componente político no livro. Aliás, essas reflexões, importantes em especial na personagem de Constantino Lievin, permitem uma ligação importante entre a biografia do autor e esta figura por ele criada. Tolstoi deve ter feito o livro grande como uma cebola protetora para poder ali colocar suas reflexões em segurança. Como sua personagem, também opta pela vida em simplicidade.

A opção por simplicidade é uma resposta para a vida. Consome menos recursos, e nos faz menos escravos da materialidade. Há menor chance de explorarmos outros, mas também, menos contribuição para a roda de consumo que sustenta nossa sociedade, tal como é arranjada. Você ajuda ao contratar uma empregada doméstica e a paga na média do mercado? OU você a explora e a impede de exercer seu potencial como ser humano fazendo outra coisa? Uma discussão que espero que não fique entre aqueles que dividem o mundo entre o preto e o branco.

Por trás das escolhas políticas, permanece a relação do ser humano com sua biologia. Não são os jogos de poder, ou a hipocrisia da sociedade que fazem um homem e uma mulher se unirem. Estes são apenas o palco onde tais disputas ocorrem, motivadas por um imperativo animal. Os seres humanos são (também) animais. Ainda há inúmeros mecanismos de sedução por desvendar nesta espécie, mas a hierarquia social e o status sem dúvida têm relação íntima com o tema.

E é nas disputas de status social, inerentes ao jogo sexual, que as convicções políticas também se tornam importantes. Não é bastante adotar um estilo de vida que o faça mais feliz. É preciso alardear isto, conseguir que isto se torne um símbolo distintivo que faça suas escolhas parecerem melhores que a de outros. Para muitos, não bastará ser vegetariano. Será preciso militância pública. Não bastará ter o direito, será preciso afirmá-lo como um distintivo social – de fundo hierárquico/sexual.


Para Tolstoi – senhor de sua atuação política, mas escravo da biologia, não bastou apenas escolher a vida simples. Era preciso difundi-la e dela fazer propaganda para a família e demais relações. Num extremo tragicômico, segundo sua biografia (wikipedia), aos 82 anos decidiu sair de casa em busca da vida simples com valores que sua família não podia compartilhar. Viajou na terceira classe (mais simples), pegou pneumonia e morreu.  A morte sim, é algo que sempre nos igualou.