quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Coisas que Encontro dentro dos livros

*Publicado originalmente no blog DOSE LITERÁRIA

A maioria dos livros que leio não são novos. Emprestados da biblioteca da família, indicações da irmã ou de um amigo, exemplares comprados em sebos. Um dos charmes de ler livros usados é encontrar as marcas das leituras anteriores.


Por que aquele trecho foi grifado? Eu daria tanta atenção a esta frase? Qual o motivo de uma orelha dobrada, uma página marcada? Quanto custava o livro? Em Cruzeiros? Cruzados novos?

Quando não se tem um marcador à mão, serve qualquer artifício. Uma nota fiscal na versão moderna, daquelas que saem das maquininhas de cartão. Uma nota fiscal das antigas, escritas à mão. Um bilhete, uma reflexão, uma anotação no canto da página. 

Os leitores vão deixando marcas. As épocas também. Já encontrei anotações minhas, de leituras prévias, que não tinham mais o menor sentido. Aparentemente minhas ideias amarelam como as folhas dos livros. Ainda bem que ainda posso acrescentar novos capítulos, ou reeditar minhas melhores versões.

Uma vez, ao embarcar no avião, havia um livro em francês, esquecido no bolsão à frente. Folheei-o rapidamente, e tive tempo de fantasiar um jeito de divulgar nas redes sociais (versão moderna das mensagens na garrafa), na tentativa de encontrar seu dono. Próximo à contracapa uma foto. Pessoa bonita, bem vestida. Seria o dono? Seria um amigo especial? Bem pesado, minhas chances eram remotas, e preferi avisar a comissária. Ela me disse que tentariam pegar o distraído ainda no desembarque. 



Será que conseguiram?

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Dias de Verão - Sônia Rodrigues

Uma das coisas bacanas da democracia, que parece esquecida em função da recente tensão eleitoral, é que podemos discordar e permanecer amigos. Nem sempre nosso argumento toca o outro. Quem disse que estamos sempre certos?

Meu primeiro contato com a autora de "Dias de Verão" foi pelo skoob. Ela discordou de maneira elegante e argumentativa de meus comentários sobre "Mentes Inquietas", também publicadas no Dose Literária. Repliquei mantendo minha posição, que nem era diametralmente oposta à dela, e fui fuçar seu perfil. Leitora experiente, me interessou, e propus segui-la. Um tempo depois, ela me contatou, pesquisando quais leitores eletrônicos eu utilizava. Admiti minha completa ignorância no tema, e ela me presenteou com um de seus livros, em formato PDF. 

Dias de Verão é uma coletânea de contos curtos, de leitura muito fácil e agradável. Em seu estilo despretensioso, Sonia não esconde suas muitas leituras, e um jeito de viver intenso, de quem se debate para extrair o suco da vida.

Não é gostoso quando nos identificamos com as ideias de um autor? Parece que mais alguém nos entende. Descobri inúmeras afinidades: o apreço pelo frio e pelo silêncio, o fascínio por relógios, o interesse pelo budismo. A qualidade relativa da vida no interior.

A vida é busca incessante, por vezes dolorosa. Nós leitores temos este pequeno segredo. Ler e escrever passa a ser um prazer e mais que isso, uma necessidade:

" Em uma carta, a alma esparrama-se como um gato em um tapete macio".

Procuramos nos livros essa companhia especial - que só se acha na afinidade de ideias. Sei que a cultura e sede de vida demostrada pela autora pode assustar os incautos. Pessoas com tanto a dividir podem ser intimidantes, e fazerem sua vida um tanto solitária. 

Sonia, esta é uma carta para você. Meu desejo após esta "degustação" de sua escrita é que você tenha muitos leitores e amigos para dividir suas percepções do mundo, e que não perca nenhuma oportunidade de regar essas reuniões com bom vinho.

domingo, 26 de outubro de 2014

Mario Prata – Blefes, Chichês e Sedução num bom livro

Com uma coleção completa de Sherlock Holmes dando sopa na minha casa, criei gosto pelas histórias de detetive. Li e reli detetives ao longo da vida, tentando ainda experimentar um pouco de Agatha Christie e Georges Simenon (gostei mais dos livros dele do que dos dela).  Estava estabelecido meu apreço por esse gênero literário.

Mas não foi isso que colocou “Sete de Paus” – de Mario Prata em minhas mãos. Escolhi este livro da prateleira pela lembrança querida de textos do autor publicados em “O Estado de São Paulo”. Publicação sempre divertida e inteligente, sem ranço de formalismos.

O mestre criado por Conan Doyle provavelmente não será nunca suplantado nas histórias de mistério. Prata não queria mesmo rivalizar com outros autores. Ao contrário, faz constantes homenagens, o que faz com que ele próprio se acuse de plágio de várias frases de outros autores. Também faz citações muito bacanas de uma coleção de leituras de policiais do mundo todo.

“A pistola dormia, com aquele seu jeito de lagartixa fria” – Pepe Carvalho, de Manuel Vasquez Montalbán

Uma zona cinzenta entre o mundo dos honestos e o mundo do crime: o próprio personagem principal é aficionado pelo gênero, e se arrisca a sugerir leituras para seu vizinho escritor.  Aparentemente, Mario Prata gostou tanto de sua cria que a reviveu em mais um ou dois livros. Tem alguns clichês de policial velhaco, experiente, sensitivo, mas ao mesmo tempo afeito à bebida e às prostitutas.

Sabe, o trabalho policial é, em sua maior parte, rotineiro e chato, mas muito de vez em quando surgem momentos bastante emocionantes, um encantamento quase infantil de brincar com as alternativas. E eu adoro isso.
 - É mais ou menos como escrever. O momento da ideia. Quando você não está esperando nada e ela vem, plena, total, te desafiando, te chamando para correr atrás dela. De certa maneira o meu trabalho também é investigativo.”

Outra zona cinzenta entre o policial e o escracho: enquanto relata o crime e seus detalhes, usa notas de rodapé e situações inusitadas para expor ideias que variam entre o divertido e o ridículo, mas que agradam no conjunto da obra.

“...Na cueca havia mesmo uma marca marrom tipo freada de bicicleta. E isso havia acontecido porque ele fez cocô fora de casa, no boteco das ostras onde havia ido com o Darwin e, evidentemente, não havia bidê como em sua casa. Desviou um pouco o rosto e deixou que o jato de água batesse ali.(...). Colocava do avesso e jato nela. Mas agora ele percebeu que não estava do avesso e já iria avessar quando viu que o jato havia limpado tudo. E chegou a uma conclusão que só um cinquentão num domingo sem pressa pode atingir. Se tu não virar do avesso a cueca, o serviço da água batendo ali é muito mais eficaz, pois penetrando nas entranhas do algodão, empurra para o ralo a coisa que estava do lado de lá, ao contrário de como vinha fazendo a anos com a cueca invertida.”

“De repente, gordo viu um objeto fazer um risco intenso e luminoso. Era a luz quebrando-se na lâmina viva. Na mão da (não cito o nome para evitar SPOILER), a navalha tornou-se ainda mais leve, macia, diáfana.” (Inspirado em texto de Nelson Rodrigues)

“Acredite quem quiser, o urologista do spa se chamava Bráulio (N.Rodapé: Doutor Bráulio De Brito, mais de 70 anos; portanto, há uns cinquenta anos enfiando o dedo no reto dos outros. Fazia aquilo com uma tranquilidade que chegava a irritar. Assoviando La vie en Rose.”

Por fim, me arrisco numa ideia. Acho que Mario Prata tem uma inteligência e volume de leituras enorme, bem como uma invejável capacidade de síntese. Um cara cuja biografia sugere um sujeito atormentado por sua capacidade de “ler” o mundo. Por que então ele se dedica a brincar com seu talento destacado? Talvez tenha feito isto em outro livro, desconfio que não. Acho que é porque prefere não se levar a sério. Tem medo, ou não está à fim de se expor.


quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Palavras Lapidadas - João Cabral de Melo Neto

Já disse em outras oportunidades que a poesia não é meu estilo literário preferido. No entanto, me interessei por “Morte e vida Severina”, desde a leitura de “A Estória do Severino e A História da Severina” (Ciampa, A.C.) durante a faculdade de Psicologia. Além da interessante tese sobre a construção da identidade de dois personagens (um ficcional e outro real) em seu viver e possibilidades, fiquei impactado pelo uso de João Cabral fazia da palavra Severina, como adjetivo.

“E se somos Severinos
Iguais em tudo na vida,
Morremos de morte igual,
Mesma morte Severina
Que é a morte que se morre
De velhice antes dos trinta,
De emboscada antes dos vinte,
De fome um pouco por dia (...)”

Quando tive a oportunidade de ler o poema inteiro, não hesitei. A recompensa foi incrível. Havia outros de igual qualidade, fazendo par com “Morte e vida Severina”, em especial “Auto do Frade”, e  “O Rio”, com seu tocante início, que compara o curso da vida do retirante ao de um rio. Nasce na serra, e corre para o mar:

“(...)Eu não sei o que os rios
Têm de homem do mar;
Sei que se sente o mesmo
E exigente chamar.
Eu já nasci descendo
A serra que se diz do Jacarará
Entre caraibeiras
De que só sei por ouvir contar
(pois, também como gente,
Não consigo me lembrar
Dessas primeiras léguas
De meu caminhar).”

Uma coletânea de poemas ótimos. Páginas e páginas de frases colocadas cuidadosamente, para serem relidas, saboreadas, ecoadas. A alma do brasileiro traduzida em uma bonita essência, captada pela mente aguda do poeta. Qualquer tentativa de seleção é injusta:

“(...)É de bom tamanho
Nem largo nem fundo,
É a parte que te cabe
Deste latifúndio.”

“Vou dizer as todas as coisas
Que desde já posso ver
Na vida desse menino (.,,)
Cedo aprenderá a caçar:
Primeiro, com as galinhas,
Que é catando pelo chão
Tudo oq eu cheira a comida;
Depois, aprenderá com
outras espécies de bichos:
com os porcos nos monturos,
com os cachorros no lixo.”

“A forca não vive em monólogos;
Dialética, prefere o diálogo.
Se um dos dois personagens falta
Não pode fazer seu trabalho.
O peso do morto é o motor,
Porém o carrasco é o operário.”

Tal qualidade preciosa me deixou triste após concluir a leitura. Mario Sérgio Cortella falava da “miojização do mundo”, da “despamonhalização da vida” (é... procure no google). Fiquei pensando em nossa mediocridade, de arte-pela-grana, de pouco tempo para digerir qualquer coisa, fast-food cultural.  O que nos livra de tropeçar nas tentativas de simplificar nossa língua, ao invés de ensiná-la corretamente? Como fugir dos “com migo”, “concerteza" e “menas”? O caminho das letras é delicioso, mas pouco conhecido de nosso povo cheio de maniqueísmos e ideias rasas.

Quem paga para um escritor lapidar as emoções em palavras, até que se chegue ao nível de nossos mestres? Acho que não há mais condições para que alguém escreva algo desta qualidade, que possa dedicar uma vida ao estudo e ao entalhe das letras. Há pouco estímulo à excelência estética entre a busca do pão e uma consulta à tela do celular. Não é de entristecer?


sexta-feira, 10 de outubro de 2014

A História do Brasil numa história (relativamente) curta

“Aqueles que não conseguem lembrar o passado estão condenados a repeti-lo”
– George Santayana (1863-1952)

Apesar de ter estudado em uma boa escola, não importava quão interessante uma matéria podia  me parecer. Eu estava ocupado demais construindo minha personalidade, tentando me sociabilizar e ainda tirar boas notas – este último um desvio de função que realmente atrapalha o aprender.

Pois foi agora, perto dos 40 anos de idade, que decidi retomar meu interesse pela história. Venho estudando história da arte no Khan Academy (www.khanacademy.org), mas em especial o momento era propício para a história do Brasil. Acredito veementemente que entender a história de nossa política e a raiz de nossas dificuldades atuais pode nos guiar pelo labirinto de ódio e de pessoas com “certeza absoluta” sobre suas opções. O ódio nunca foi um bom conselheiro.

Escolhi o livro de Eduardo Bueno por ter uma boa impressão de suas entrevistas na TV. Ele parecia dar um refresco ao estudo da história do Brasil, interpretá-la com um olhar mais distante, diferente daqueles que a codificaram e ideologizaram durante o período militar. É certo que toda a opinião tem ideologias por trás, mas eu queria mais fatos, para que pudesse eu mesmo checar as interpretações que deles derivaram.

“BRASIL, uma história – Cinco séculos de um país em construção” é ótimo! Leitura leve, mas com bom nível de detalhe e encadeamento de ideias. Cumpre bem a proposta. Não tem cara de livro didático, e te faz prolongar as sessões de leitura.

Passando pelos nomes importantes de nossa história, que vemos nomeando ruas e avenidas, tive maior conhecimento sobre o descobrimento, a relação entre os países europeus que por aqui deitaram seus interesses, nossa independência, a república, a escravidão, os ciclos econômicos, Getúlio Vargas, período militar, Diretas já, enfim, aqueles temas que não nos são estranhos, mas que fazem mais sentido se apresentados em sequência curta, mesmo que com menos detalhes. O autor fala de Collor, FHC, Lula e mesmo o início do governo Dilma, com um olhar suficientemente distante. Não endeusa nenhum deles, fala de acertos e erros, e de nossa relativa dificuldade em superar problemas pela fraqueza de nossas instituições.

Faz também um bom retrospecto de nossa cultura. Esta parte é particularmente interessante para quem gosta de literatura e música. Teve apenas um pequeno deslize, ao apresentar o Chacrinha como “mais brilhante, mais tropicalista, mais antropofágico, mais macunaímico e mais brasileiro” dos apresentadores. Teve sua importância, é óbvio, mas é preciso umas doses na cabeça para usar o adjetivo “macunaímico”.

Algumas Frases:

“... Thomas Ewbank, também britânico, dizia que, no Brasil, “um jovem preferiria morrer de fome a abraçar uma profissão manual”. Segundo ele, a escravidão tornara “o trabalho desonroso – resultado superlativamente mau, pois inverte a ordem natural e destrói a harmonia da civilização”.

“D. Pedro II parece ter percebido a verdade contida na frase do senador Holanda Cavalcanti: “Nada se assemelha mais a um saquarema do que um luzia no poder”. “Luzias” eram os liberais, e “saquaremas” os conservadores: embora em tese fossem adversários irreconciliáveis, no fundo eram farinha do mesmo saco.”

“Dutra era uma figura caricata, sobra a qual surgiram muitas piadas. Uma delas contava que, ao ser cumprimentado por Truman, que dissera “ How do you do, Dutra”, o marechal de imediato respondeu: “How Tru you Tru, Truman”







quarta-feira, 3 de setembro de 2014

Noturno Indiano - Antonio Tabucchi

Uma história de herói, em que o protagonista sai de sua posição de conforto, aventura-se no desconhecido e sai aperfeiçoado desta experiência. Uma história jornalística, em que o cenário denuncia uma condição política, uma injustiça, um crime. Uma história romântica, em que após desencontros um casal se encontra e se ama para sempre, ou se mata por não consegui-lo. Uma saga de família, com seus altos e baixos. Encontre tantos outros roteiros. Hoje em dia, é difícil ser um autor original.

Na busca por uma obra genuinamente nova, vários autores propõem experiências. Que tal escrever sem pontuação? Sem final? Com final alternativo? Que tal embaralhar os capítulos? Quebrar expectativas do leitor? Mas parece que essas fórmulas agradam menos aos leitores. Nossos clássicos e best-sellers ainda são derivados das velhas fórmulas.

Antonio Tabucchi tenta uma novidade em “Noturno Indiano”. Apenas um homem viajando por hotéis da Índia. O Homem procura outro (Xavier), razão frágil de suas andanças. Sem pressa, sem vida antes ou depois, absorve o entorno de maneira contemplativa, neutra. Fica embriagado por vezes, mas prescinde desse recurso para parecer destacado da realidade. Inebria-se ainda dos detalhes, das pessoas que conhece, das vaidades que confronta e apresenta. Quem já leu “O Apanhador no Campo de Centeio” ou “On the Road”, talvez tenha até se afeiçoado a esta estética. Uma escrita descritiva, saborosa, mas que abre mão de um destino, de um propósito. Não por acaso, esses exemplos também se passam em viagens, em locais transitórios.

Sofia Copolla também explorou esta transitoriedade, fazendo seus filmes se passarem em hotéis. Hotéis são agradáveis, mas impessoais. Te compelem a uma situação transitória. Você está ali apenas temporariamente. São cenários, mas para situações reais. Aquilo é sua vida, mas ao mesmo tempo não é. E para onde levarão as viagens e as experiências acumuladas? Não importa. Decida você, leitor, o nem se dê ao trabalho. Você carrega suas experiências consigo, como páginas lidas.

Da mesma forma, Tabucchi parece não se importar. Quer apenas que suas páginas sejam lidas, e façam parte de nossa experiência. Não precisam levar a lugar algum:

“Só nesse momento percebi que era louco. Percebi (...), e tudo isso não me espantou: provocou-me só uma indiferença cansada, como se tudo fosse necessário e inelutável.”

Ah! Em tempo, o Xavier, que o personagem principal procura é nada menos que...bem, não serei “spoiler”, mas me surpreendeu. Deixei você curioso(a), certo? "Necessário e Inelutável"...

“ – Quem pode saber? – eu disse - , é difícil, isso nem eu que escrevo o livro sei. Talvez procure um passado, uma resposta para alguma coisa. Talvez queira agarrar algo que tempos atrás deixou escapar. De qualquer modo, está à procura de si mesmo. Quero dizer que é como se procurasse a si mesmo procurando-me: nos livros acontece muitas vezes assim, é literatura.”

Empilhei todos os livros que li. Do alto desse modesto montinho, não consegui enxergar a qualidade tão premiada de Antonio Tabucchi. Ao menos não em “Noturno Indiano”.


quinta-feira, 21 de agosto de 2014

Sobre o Caminho de Santiago de Compostela

Recentemente, tenho me dedicado a caminhadas longas. Um amigo me introduziu ao grupo, que dedica algumas manhãs a caminhadas, que vão de 15kms a (por enquanto) 41kms. Nossas caminhadas estão registradas no blog http://osfortescaminhamconosco.blogspot.com.br/ .

Quando o corpo atinge seu ritmo ótimo de funcionamento, a mente se equilibra. Com o devido treino, você deixa de lado o que estava fazendo antes e o que fará depois da caminhada, sintoniza com o entorno, mimetiza com ele, você não é mais indivíduo: é natureza, fluindo pela estrada, passo a passo; é sangue, fluindo pelas artérias a cada pulso; é silêncio que a tudo permeia, interrompido pelo ruído de suas pegadas.


A caminhada como transformação. Caminhar por horas tem claras vantagens além da prática esportiva. O peregrino logo identifica a óbvia associação da caminhada de longa distância como uma forma de uma meditação em movimento. Seu expoente cultural máximo é simbolizado pela divulgação e prática dos caminhos de peregrinação – dentre eles o mais famoso – o Caminho de Santiago de Compostela.

 “Lendas do Caminho de Santiago” é uma descrição de mitos cristãos, coletados por um estudioso da “Rota Jacobeia” (Iacobus é a origem Latina do nome de Santiago). Uma sequência de histórias associadas a monumentos, igrejas, pontes e pontos de interesse no caminho.

Seguindo a apresentação objetiva do mito, há uma interpretação do autor, tentando extrair algum ensinamento ou atribuir relevância ao mesmo. O autor tenta sugerir uma unicidade simbólica entre os mitos. Como se o caminho e suas histórias tivessem uma coerência, possivelmente de inspiração divina, que explicavam sua importância e longevidade. Essa ideia interessante, provavelmente, é o que explica seus anos de estudo e dedicação ao tema.

O resultado, no entanto, ficou burocrático. Não cheguei a experimentar a unicidade proposta, e algumas das histórias pareceram pueris, cansativas.  É importante contextualizar que minha espiritualidade não se traduz muito facilmente nesses referenciais, mas mesmo assim me esforcei, procurando por alguma identificação com minhas experiências de caminhada. Mesmo assim, não consegui ter forte interesse pelo conteúdo do livro. Talvez escrito por um erudito em área tão especifica, tenha reduzido seus raros leitores àqueles com referenciais semelhantes.

A menos que esteja interessado em saber detalhes religiosos do caminho, não recomendo a leitura, pois perde-se aquele frescor de uma experiência vivida. “A lenda de Santa Orosia”, “o cajado de São Francisco”, “O gigante Ferragut”, “O castigo de Santa Columba”, alguma dessas histórias tem raízes fortes para você? Se a resposta for negativa como era para mim...talvez deva tentar outra coisa.

Com um tema simbolicamente tão rico, não é de admirar que tenha sido objeto de ampla literatura e produção cultural. Há guias, descrições de pessoas que fizeram o caminho, dicas, etc. São experiências muito pessoais, mas gostosas de acompanhar. Esbarrei por algumas já: desde uma leitura antiga de “O Diário de um Mago”, que sinceramente foi prazeroso, mas deixou poucas marcas (há anos da leitura) – até o contato mais recente, por acaso, do filme “The Way” (2010).

Uma metáfora para a vida. O caminho de Santiago, imagino, faz-nos viver o presente enquanto caminhamos por longos 800km, dia após dia. Em seu percurso, você com sua persona: dedicará tempo a ela e suas necessidades? Seus medos? Ou empreenderá a jornada ao desconhecido? Dá pra fazer tudo isso. Dá pra hospedar-se em bons hotéis e fazer turismo, dá pra seguir apenas mais um clichê cultural, dá pra carregar na mala contingências para quaisquer desconfortos.

Ao final, você colhe o que plantou. Os méritos são concedidos com justiça. Como ao final de uma sessão de cinema, de um período de embriaguez, ou da leitura de um livro, há a difícil reconexão com a vida. O caminho verdadeiro, me disseram é esse que inicia quando se termina a peregrinação.

Uma alma dedicada ao essencial jogará fora aquilo que você carrega de supérfluo. Sua vida não será a mesma. 

quarta-feira, 30 de julho de 2014

Pantaleão e as Visitadoras

Ao tomar este romance de Mario Vargas Llosa, prepare-se para deliciosos momentos de diversão. O Peruano vencedor do Nobel de Literatura nos presenteia com seu “Pantaleon Pantoja”, oficial do exército de formação rígida e comedida, a quem é dada a ingrata tarefa de reduzir os casos de assédio sexual promovidos pelos combatentes em postos distantes na Floresta Amazônica. A solução implantada com urgência: criar uma divisão oculta, formada por prostitutas dedicadas a visitar os soldados periodicamente e atender-lhes às necessidades animais.

“ – Já aconteceram casos de pederastia e até de bestialidade – explica o Coronel Lopez Lopez, - Imagine que um cabo de Horcones foi surpreendido fazendo vida de casado com uma macaca.
 - A macaca atende ao absurdo apelido de Mamadeira da Quinta Quadra – contém o riso o Alferes Santana. – Ou antes, atendia, porque a matei com uma bala. O degenerado está na prisão, meu coronel.”

O livro se desenvolve num interessante artifício do autor. Não toma para si a voz de um observador externo, ou os pensamentos de um dos personagens para contar sua história. Ao contrário, lança mão de uma sequência de cartas e relatórios com linguagem objetiva/militar sobre as conclusões e decisões do Capitão Pantoja acerca de sua missão.

“Que entre a matizada gama de prestações proporcionadas figuram a simples masturbação efetuada pela meretriz (manual: 50 soles; bucal ou “corneta”: 200); até o ato sodomita (em termos vulgares ´polvo estreito´ ou ´com cocozinho´: 250), o 69 (200 soles), espetáculo sáfico ou ´tortillas´ (200 soles c/u), ou casos menos frequentes que exigem dar ou receber açoites, vestir ou ver disfarces e ser adorados, humilhados e até defecados, extravagancias cujas tarifas oscilam entre 300 e 600 soles.”

O autor faz uso inteligente de várias tensões, e as explora com senso de humor. Os militares se debatem entre as aparências de uma organização séria de defesa, e o serviço que colocaram em funcionamento. Há a clandestinidade, mas também a necessidade de controle e prestação de contas. Llosa faz piada da hipocrisia da fidelidade conjugal e da moral das beatas. O povo luta entre o exercício da religião oficial e a vivência visceral de uma seita com sacrifícios de animais. A imprensa local se divide entre a compaixão pelo sofrimento das prostitutas, e a condenação dos atos “imorais”. Enquanto as diferentes interpretações desfilam no livro de Llosa, há o pragmatismo do general em Lima:

“Tigre Collazos ri a gargalhadas: ´é preciso encarar as realidades e chamar ao pão pão vinho vinho: os soldados precisam foder e você lhes consegue com quem ou o fuzilaremos a canhonaços de sêmen”

Llosa me causou a mesma impressão que Gabriel Garcia Marquez, de que há uma irmandade ainda a ser explorada entre nossos hábitos e o de nossos vizinhos de língua hispânica. Faz também lembrar Jorge Amado quando este descrevia uma Bahia de instintos aflorados, de temperos e sabores, de calores e suores, de natureza indomada e de excessos de toda ordem – mas sem as chatices de seus trechos panfletários.


Sob a influência do clima quente e úmido, e uma inocência paradisíaca expõe nossos instintos mais belos e os mais cruéis. Ao fundo de páginas jocosas, um estudo de antropologia:  vivemos como nas primeiras civilizações humanas, fazendo lutar nossos instintos com nossas regras. Aos de cabeça aberta, dispostos à linguagem despudorada, um ótimo livro.

quarta-feira, 16 de julho de 2014

O Poder da Paternidade- A QUEDA, Diogo Mainardi

Tive interesse por este livro, pela primeira vez, ao assistir ao programa RODA VIVA (http://youtu.be/te_orU6Ft-A?list=PL94BBCA6961128733) , da TV Cultura, com este autor. Além das habituais polêmicas sobre suas opiniões políticas, o tema central do programa era o lançamento desse seu romance. O autor possui mais outros (inclusive o premiado “Malthus”), além de livros-coletâneas de artigos que escreveu para a revista VEJA.

O retrato do ser humano, é muito interessante. Diogo Mainardi teve a chance de uma educação aprofundada. Leitor de alto nível, desenvolve suas ideias próprias e as apresenta com sua expressão de enfado, segurança e até certa arrogância.

Diogo tem dois filhos, dos quais o primeiro, devido a um erro médico no parto, teve paralisia cerebral, apresentando comprometimentos motores. Após ganhar processo contra o hospital, mudou-se para Veneza, onde já morara, e agora vive tranquilamente, com uma rotina bastante discreta.

“A QUEDA” é sobre sua relação com o filho e suas incapacidades. Mostra de maneira interessante e bem escrita a luta travada por uma mente inteligente, com muitos argumentos, para acomodar a realidade que o aplacou. Mostra como o amor paternal pode transformar a vida de um homem.

A impressão que tive é que até o nascimento do filho e da extrema responsabilidade que isto acarretou, Mainardi vivia como um estranho no mundo. Pessoa com pensamentos próprios e senso crítico afiado, devia se enfadar com nossa cultura medíocre, baseada nas aparências e no consumo. Sua resposta defensiva foi a arrogância, ou intelectualizar-se ainda mais, na vaidade de repudiar e se diferenciar do incômodo à sua volta. Seu filho o trouxe do mundo das ideias:

“Sua paralisia cerebral obscureceu tudo o que eu sempre cultuara. Em particular, a literatura. O que se iluminou – o que se tornou o único foco de minha vida – foi o que ela tinha de mais ordinário, de mais doméstico, de mais familiar.”

Agora reatado com o mundo, com a beleza finita e rara de cada vida, mostra saborear isto a cada dia, acompanhando os tênues progressos de seu filho. Continua cético e incomodado com a ignorância à sua volta, mas agora parece ter encontrado uma razão para seguir. “A QUEDA” é também um tributo ao filho e ao presente involuntário que recebeu.

Continua ciente de sua (nossa) insignificância histórica, mas agora a abraça como uma velha amiga. Diogo Mainardi afirmou no RODA VIVA que este é seu ápice como escritor. Que não fará mais nada “que preste” além deste livro, pois foi completamente sincero ao fazê-lo:

“Para Marcel Proust, a ´vida verdadeira, a única vida plenamente vivida, era a literatura`. Para mim, a vida verdadeiramente vivida passou a ser Tito.”


Ao desentronizar a literatura, aproxima-se mais de seus recantos mais nobres e de seus talentos mais raros. Este livro, pela sinceridade ao limite, pela análise ácida de nossas ilusões, pelas referências históricas, ganha-nos pelo estômago, e passa a fazer parte de meus preferidos. 

sexta-feira, 11 de julho de 2014

O Dia do Chacal – Frederick Forsyth

Você talvez conheça “Os Pinguins de Madagascar”. Do grupo de pinguins com habilidades características, destaca-se o mais robusto deles, Kowalski, a quem sempre é delegado o trabalho mais duro. E não é que este nome e características provavelmente derivam de “O Dia do Chacal”?

Esta dica de leitura vai empolgar os fãs de espionagem e conspirações. Frederick Forsyth foi jornalista e atuou na Europa das décadas de 60 e 70, tendo testemunhado um período político (para variar) conturbado, com a ascensão de governos de extrema direita e o desmoronar das últimas colônias.
Aproveitando este instigante contexto histórico, Forsyth escreveu bem sucedidos thrillers, no melhor estilo “James Bond”.  Além do mais famoso e primeiro sucesso “O Dia do Chacal”, escreveu ainda “Dossiê Odessa”, “O Quarto Protocolo” e “A Alternativa do Diabo”, todos desconhecidos para mim, espero que por pouco tempo.

Às primeiras páginas do livro, contextualizando a política da França e os reais atentados à vida do Gen. Charles De Gaulle, eu confesso que a leitura parecia morosa. Lá pela página 80, no entanto, você já está nas mandíbulas da trama, e não largará o livro. Um assassino minucioso e elegante age como um preciso instrumento na conspiração para matar o presidente da França, e o leitor acompanhará seus movimentos, assim como os de seus oponentes, representados pelas forças de segurança encarregadas de proteger o chefe de estado.

Forsyth tem habilidade em manter o ritmo da trama. Você não consegue realmente torcer apenas para um lado, e não fica entediado sequer por uma página. Ficará intrigado com a atitude de absoluto controle do assassino, que manipula a seu favor o tempo, a elegância, a qualidade do que utiliza. Em seus caminhos, cenas de crueldade e flertes com ricas mulheres em hotéis exclusivos:

(pg 313)... Tinha ficado por alguns momentos olhando a paisagem adormecida, até que ela olhou para ele e viu que os olhos dele não estavam voltados para a janela mas, sim, para o profundo sulco entre os seus seios, onde o luar dava à pele uma brancura de alabastro.
Ele sorriu ao ser surpreendido e lhe dissera ao ouvido:  - O luar faz até do homem mais civilizado um primitivo.
(...)A coxa era comprimida por ele abaixo do ventre e ela lhe sentia a rígida arrogância do membro. Por um segundo, afastou a perna e logo voltou a encostá-la, com o prazer daquela pressão no cetim do vestido. Não houve um momento consciente de decisão; percebeu sem esforço que o queria desesperadamente entre suas coxas, no íntimo de suas entranhas, a noite inteira.

Do outro lado, o encarregado pelas investigações Claude Lebel, ao melhor estilo do investigador que possui determinação e instintos, que o fazem ser reconhecido e obter a cooperação das principais polícias do mundo. Com ele, a missão de encontrar uma anônima ameaça, sob pena de comprometer sua carreira e o futuro de seu país, e ainda fazê-lo de maneira discreta, evitando o constrangimento para De Gaulle, que se recusa a alterar sua agenda e reduzir a exposição pública.

Tudo se passa, obviamente, num mundo sem internet ou e-mails. Os esforços de comunicação entre polícias e conspiradores passa por casas de câmbio, reservas em poucas cias aéreas, telefonemas internacionais que demoram meia hora para serem completados, diferentes documentos de identidade e exigências legais de diferentes países, no que Forsyth tem a oportunidade de mostrar os resultados de uma vida de viagens pela Europa, e o domínio de mais de três idiomas. Um verdadeiro cidadão do mundo, numa época em que a logística e as comunicações ainda não dispunham de tecnologia que garantisse sua eficiência.


Vale muito a leitura!

sábado, 17 de maio de 2014

O que é o Homem sem seu Trabalho?

Admirado por Tolstoi, James Joice, George Bernard Shaw, e outros nomes importantes, Tchekhov foi médico e famoso escritor russo. Sua literatura se destacou ao representar técnicas modernas para sua época, como a desconsideração por um final ou fecho para a história, e a elaboração psicológica das personagens e a representação de seu fluxo mental.

Foi por isso que “furei a fila” de meu planejamentos de leituras, iniciando o quanto antes “As três irmãs”. Para quem está habituado a romances, ler uma peça de teatro gera um estranhamento inicial. Foi assim que me senti também ao ler “O amor do Soldado”, peça de Jorge Amado. Tchekhov nomeia as personagens, faz uma descrição simples do cenário, e parte para o ato, com variadas interações se alternando, gente entrando e saindo, mas o ambiente intacto, sem descrição de mudanças. Como alterna entre os nomes e os apelidos (Maria torna-se Macha, ou Machenka), algumas vezes tive que reler os trechos, buscando entender a quem uma fala se dirigia. Tudo o que acontece - e não espere muita ação - é descrito nas falas deles. Não há recursos descritivos para o que está acontecendo. Não há uma voz do autor, outra característica deste tipo de obra.

Não cheguei a sentir falta de um fecho. Não há essa necessidade. Estamos acompanhando a história como alguém que observa pela janela, despercebido. Não sabemos o passado, e tampouco o futuro daqueles que se manifestam, e entendemos o que acontece com base em dicas de suas falas, ou em lacunas que preenchemos com nossas teorias. Não estamos testemunhando um acontecimento atípico, apenas o fluxo da vida, suas conclusões e insatisfações.Fiquei suficientemente entretido com o fluxo ao longo da peça. As personagens bem descritas fazem você querer acompanhar as cenas, digerindo o que cada uma pensa, analisando e mergulhando em seu contexto de vida.

Os temas envolvem desde os costumes russos e interação entre familiares e conhecidos, a uma crítica social. Formado médico através de seu esforço, Tchekhov viu e tentou ajudar os pobres de sua cidade. Critica a aristocracia russa, tanto quanto Tolstoi tenta fazer com seu Liêvin (Ana Karenina). Mostra-lhes a futilidade e falta de propósito de vida. O tédio irremediável, e seu combate por meios duvidosos, como o acúmulo de cultura,  brigas pueris, a bebida, ou o jogo.

Talvez tenha sido o cenário que antecedeu às revoluções que ocorreram naquele país, e que tanto alteraram o panorama político e econômico mundial. Ainda assim, não é explícito ao abordar o tema, não torna o livro panfletário. Escolhe como meio de entrada nesse assunto o drama de pessoas hábeis e inteligentes, que não conseguem ver seu valor e sentido para vida por não constituírem sua identidade social através do produto de algum trabalho.

“Ah! A nostalgia do trabalho! Como a compreendo, meu Deus. Nunca fiz nada, em toda a minha vida. Nasci em São Petersburgo, uma cidade fria e ociosa. Nasci de uma família que jamais conheceu trabalho e preocupações. (...) Já se está preparando uma boa e formidável tempestade que avança, que já está perto, que muito breve vai cair sobre nossa sociedade e vai ´varrer´ a preguiça, a indiferença, a podridão do tédio, os preconceitos contra o trabalho. Um dia, trabalharei.”

Como primeira leitura, provou seu valor (como se pode atestar nos trechos selecionados abaixo), mas talvez se deva começar por uma de suas crônicas. Numa pesquisa rápida, a mais famosa é “O Jardim das Cerejeiras”.

Frases selecionadas:

“Muitas vezes penso: e se recomeçássemos a vida, desta vez conscientemente? Se vivêssemos uma vida como quem faz um rascunho, e pudéssemos vive-la de novo passada a limpo? Então cada um de nós teria sobretudo tentado não se repetir e tentado criar condições d evida diferentes, uma casa florida, como esta, cheia de claridade.”

“Depois de nós, os homens viajarão de balão; as roupas terão mudado de forma; descobrirão, talvez, um sexto sentido e o desenvolverão, mas a vida continuará a mesma, uma vida difícil, plena de mistérios e feliz. Daqui a mil anos o homem suspirará como hoje: “Ah! Como a vida é dura!”. Mas, da mesma maneira que hoje, terá medo e não quererá morrer.”


“A vida é pesada para se carregar. Muitos entre nós a consideram silenciosa e desesperada e no entanto devemos confessar que ela se torna dia a dia mais luminosa, mais fácil e tudo nos faz crer que não está longe o tempo em que ela se iluminará inteiramente.(...) Hoje tudo isso já foi vivido, deixando para trás um enorme vazio que não sabemos evidentemente como preencher. A humanidade procura apaixonadamente e encontrará, é certo, Ah! Mas que ela se apresse!(pausa) Se se juntasse a cultura à capacidade de trabalho e a capacidade de trabalho à cultura, então...”

sexta-feira, 9 de maio de 2014

Eu sempre gostei de imaginar que existe algo mais.

PARALELOS é o primeiro romance de Leonardo Alkmin. Sua carreira envolve atividades como ator e roteirista (Ah! Eu tenho muita vontade de escrever roteiros!).

Gêmeos num acidente de ônibus. Um morre, mas pelo plano divino, o outro é que deveria ter morrido. Isso cria um desequilíbrio nas leis universais. A história se desenrola, alternando entre os acontecimentos na terra, com o gêmeo que deveria ter morrido, e no outro plano, com o gêmeo que deveria ter sobrevivido.

A história contada por Leonardo Alkmin tem ritmo frenético de acontecimentos. Transmitiu para mim uma ansiedade do autor por fazer acontecer uma história, como se ele tivesse que passar por pontos pré-estabelecidos. Parece ter tido a necessidade de manter um volume de novidades vindo, num esforço para manter o interesse do leitor. Seria um vício de outros formatos a que ele se dedica? O esforço produziu mais de 400 páginas, mas não evitou um livro ralo.

Ele também tenta fazer suspense sobre o final, imprimindo uma atmosfera mais “thriller”, em especial na participação de uma repórter investigando a vida dos envolvidos no acidente. As coincidências que ele tem que criar para que a repórter consiga viver a história de perto são meio forçadas. De qualquer forma, consegue não ser óbvio, e o final não decepciona.

Do que eu gostei:

Da imaginação de criar toda uma hierarquia no universo pós-morte, e definir regras para sua interação com os vivos. Eu sempre gostei de imaginar que existe algo mais. Se você gosta de histórias que envolvam o plano espiritual, pode ter bons momentos de diversão, sem um ranço religioso.

Alkmin também é hábil ao descrever seus personagens adolescentes, o que me faz indicar o livro mais para esse público. As descrições de viagens, emoções maniqueístas, sentimentos amplificados, sensualidade, são bastante verossímeis. Parecem lembranças do próprio autor.

Do que eu não gostei:

Da necessidade de “justificar” as regras universais baseado em teorias da física. Tem trechos muito chatos, como:

“Ao se tocarem, provocavam a liberdade assintótica. Como estavam reduzidos a quarks, a liberdade assintótica era a saída obvia, porque, paradoxalmente, quando a distância entre os quarks diminui, a interação da energia fica mais fraca, até anular-se.”

Nesses trechos, os olhos vão correndo, até que um novo parágrafo nos devolve para a história principal. E esse “pedágio” se repete por vários capítulos, falando de quarks, muons, taus e todo o zoológico de partículas. O autor se atrapalha todo entre a individualidade que ele precisa dar aos personagens etéreos e seus dilemas, e as regras que definem que esses personagens “existem” mas não como indivíduos separados do todo.


Eu me lembro de ter tido esse mesmo desagrado quando li alguns livros da série “Operação Cavalo de Troia”, uma história legal, mas com páginas de pseudociência, só pra tentar dar uma aura de verdade à realidade proposta. Pra que isso?

sexta-feira, 25 de abril de 2014

Autoajuda (Brendon Burchard – O Poder da Energia)

Autoajuda (Brendon Burchard – O Poder da Energia) – Ed. Novo Conceito

Atire o primeiro volume aquele que nunca leu um livro de autoajuda. Todos nós temos uma eterna luta a travar com nossos desejos e limitações, e, não podia ser diferente, há sempre alguém disposto a nos vender o “pulo do gato” para superarmos nossas dificuldades. Seja um comprimido, um jeito de pensar, um estilo de vida, uma dieta, um preceito religioso, qualquer um que acredita ter encontrado o caminho passa a professá-lo como solução para todos.

Se for esperto, vira palestrante e lança um livro desvendando seu caminho “infalível” para a felicidade. Brendon Burchard fez isto. Ganha dinheiro dando palestras e treinamentos sobre seus métodos, e é claro, vendendo livros. Seu “O poder da energia”, quarto livro da carreira, foi Best-Seller n1 do New York Times, seguindo o sucesso dos anteriores.

Somos como Burchard, apenas menos ambiciosos. Aquilo que está dando certo para nós é rapidamente incorporado a nosso discurso aos amigos deprimidos. Diante de qualquer crise, nossas respostas frágeis e temporárias para o mistério da vida tornam-se os salva-vidas que atiramos aos que se afogam.

Aos 15 anos, estabeleci algumas metas e vi meu foco aumentar e a maioria delas se realizar. É uma prática que renovo a cada 3 anos em minha vida, e divulgo este hábito para todos que conheço. Por trabalhar com Psicologia Organizacional, estou sempre lendo material sobre a superação de limites. Recomendo especialmente os livros de Anthony Robbins – “O Poder sem Limites” e “Desperte o Gigante Interior”, que sempre me ajudaram de maneira prática. Burchard também cita este autor em seus agradecimentos.

"O Poder da Energia" também é bom. Ganha você logo de cara, num artificio de extrema sinceridade do autor. Ao invés de iniciar o livro contando como suas técnicas o levaram ao sucesso, ele cita momentos de grande tristeza, em especial uma tocante descrição sobre a morte de seu pai.

É a partir dai, que defende suas técnicas, como formas de superação e de “colocar mais vida na vida”. Ele primeiro iguala sua experiência à nossa, com altos e baixos, e depois apresenta com humildade sua proposta. Burchard dá dicas interessantes sobre como escolher seus objetivos e amigos, e como ser quem queremos ser para nós e para os outros. Faz isto sem aquela empolgação messiânica que tanto incomoda e tira a credibilidade de outros autores de autoajuda.

Com a guarda do senso crítico muito alta, você poderia abandonar o livro na página em que ele recomenda que devemos tomar seis (!) litros de água por dia. Ainda assim, ele logo será humilde novamente, reconhecendo que esta informação é polêmica, e convidando-o a experimentar por si mesmo.

A vida é uma viagem complicada, e é fácil encontrar buracos em qualquer solução proposta. Se as técnicas de Burchard dão certo para todos que lêem o livro: claro que não! Aproveitamos de qualquer forma aquilo que estamos prontos para colocar em prática, e deixamos de lado aquilo que não nos convenceu. Sua leitura produz essa sensação positiva de que tudo pode ser diferente, e que podemos corrigir a rota e seguir para rumos mais próximos da felicidade.

Já é bem mais do que pode ser dito da maioria dos títulos sobre o tema.

quinta-feira, 17 de abril de 2014

Revisitando Histórias em Quadrinhos

Tenho apenas duas coleções. Uma de selos e outra de quadrinhos. Tive interesse pela filatelia, seguindo o comportamento de vários amigos que lá por 1988 eram dedicados ao tema, mesma época em que comecei a curtir comprar, ler e guardar quadrinhos.

A coleção de selos da maioria dos amigos era modesta como a minha, com uns selos ganhados e trocados, outros comprados. Porém, uma delas superava a todas em quantidade e variedade. A coleção deste amigo era mais diversa e rica, porque seu pai havia reunido selos numa caixa de sapato durante a vida toda. Ao longo das inúmeras arrumações de casa, mudanças de cidade, mudanças de vida, mudanças de foco, ele perseverou, preservando sua caixa de sapato cheia de selos.

Foi admirando o poder deste gesto, que decidi guardar minhas coleções. Por simples que fossem, seriam antigas e raras quando meu filho se aventurasse em continua-las. Ele tem quatro anos agora, então não faço ideia se um dia ele continuará a coleção, ou se apenas vai joga-la fora ou vende-la. De toda forma, preservei meus selos e meus gibis (como chamávamos antes de as novas gerações inventarem nomenclaturas mais elaboradas), e espero ter a chance de entregar a ele quando for mais velho.

Meu interesse por quadrinhos aumentou quando um amigo daquela época me mostrou que os quadrinhos poderiam ser mais do que “Turma da Mônica”. Passei a colecionar as revistas dos heróis da Marvel (e uns poucos da DC), em especial as histórias do DEMOLIDOR e do JUSTICEIRO. Gostei no jeito “cinematográfico” de contar histórias, dos roteiros radicais, e dos atos de heroísmo. Fantasiei ter poderes e esconder minha identidade secreta, que quase sem querer seria eventualmente descoberta pela garota de quem eu gostava. Quem quiser dar uma olhada na coleção, basta visitar meu perfil no skoob.

Há pouco mais de um mês, um conhecido casou, mudou para um apartamento pequeno e foi vencido por um ultimato da esposa. Aceitei imediatamente a honra de ganhar sua coleção. Guardaria-a com cuidado, junto da minha, não antes de cadastra-la na minha “estante”.  Para fazer isto, além de localizar os títulos, era importante lê-los. Fazia mais de vinte anos que eu não abria um gibi.

Da experiência, um bom e um mau resultado. Começando pelo mau, NÃO AGUENTEI ler X-MEN. Terei mudado eu ou a linha editorial? Provavelmente os dois. Achei que eles só pensavam em lutar, com bravatas babacas contra os inimigos: “isso porque você ainda não provou meus poderes”.  Frustrantes também as experiências com o HULK, QUARTETO FANTÁSTICO, e apenas suportáveis com HOMEM-ARANHA. Havia pouco DEMOLIDOR e nenhum JUSTICEIRO, infelizmente.

E a boa experiência? SPAWN!!! Não existia no tempo em que eu acompanhei, então li quase a coleção toda sem parar, até o N100 (faltando alguns). Desenho primoroso, roteiro melhor ainda. Suspense de primeira, uma trama com toques religiosos, outros policiais. O clima é fantástico, te transporta para noites chuvosas e sinistras. SPAWN é tudo o que o Batman tentou ser, sem conseguir.

“Sirenes distantes, gritos abafados e suspiros de amantes rompem o silêncio noturno. Uma voz flutua acima das demais, ecoando pelas trevas. Suave como um sussurro e poderosa como um trovão. Você pode ouvi-la?  - Este é o destino que eu escolhi. Este mundo e suas sombras me pertencem. Agora e para sempre...eu sou o SPAWN!”


Não sei se há esperanças para o velho leitor de quadrinhos que existe em mim. Mas este “revival” de leituras de gibis me ensinou uma coisa nova. A boa literatura não está apenas nos livros clássicos. Ela também pode se apresentar numa história ilustrada, na crônica da revista semanal, num capítulo inspirado de novela, num filme que nos marca. Basta não termos preconceito e direcionarmos nosso olhar sedento, em busca daquele detalhe que vai prender nossa atenção. Contar e ouvir histórias está em nós de maneira indelével.

quarta-feira, 19 de março de 2014

Mergulho Filosófico

(Sobre “Um, nenhum e cem mil” – de Luigi Pirandello)

Até onde você está disposto a ir, quando mergulha em seus pensamentos e reflete sobre sua vida, sua identidade e um sentido para suas experiências?

Intuo que todos nós temos esses momentos filosóficos pessoais. É uma necessidade, como dormir e comer. Melhor, é um automatismo, como o pulsar de nossos corações. Temos esta impressão de que somos únicos e especiais, ao garimparmos boas ideias em nosso íntimo, ao mesmo tempo que ansiamos por ver essas ideias também descobertas por outros. Ficamos felizes quando as vemos confirmadas nas palavras de alguém que respeitamos, ou nas páginas de um livro.

Uma epifania está lá, espreitando no escuro, para te pegar no momento entre a vigília e o sono, ou ensaboado no banho, entre as falas de uma aula, num copo  de vinho, ou observando as faixas na  estrada. É como se distraídos pudéssemos acessar uma prateleira com informações que sempre estiveram lá, mas por alguma razão permaneciam empoeiradas, aguardando que explorássemos seu conteúdo.

Algumas dessas ideias que construímos, tenho a impressão, não evoluirão até mais do que simples sensações ou certezas, difíceis de traduzir em palavras. Quando tentamos fazê-lo, parecem perder seu charme, sua sabedoria se esvai, fugidia – ou pior, tornam-se errôneas, incompletas. Outras vezes, nos vemos chegando a conclusões já conhecidas e expressas por outros, com uma sensação de que chegamos a ela de um jeito novo, e que ao invés de termos andando em círculos, traçamos um espiral, revisitando ideias num nível acima do anterior, renovados por alguma mudança que sua chama produziu em nós.

Neste livro, o personagem descobre, a partir de um inocente comentário da esposa, que não é quem pensa que é. Ou melhor, que é para cada um que o vê uma pessoa diferente. Impotente diante da construção que os outros fazem de si. Esta descoberta evolui com as páginas do livro, com implicações enormes em sua vida.

Luigi Pirandello faz este mergulho sem qualquer rede de segurança. Olha para a escuridão confiante, como se soubesse de antemão ser capaz de lidar com quaisquer perigos que saíssem dali.  Mais que isso, convence-nos que não é ele próprio (o autor) quem faz este percurso, mas seu personagem principal. Podem imaginar como é fascinante ser testemunha dessa façanha? Ler o destrinchar de pensamentos complexos, traduzindo-os na experiência e contexto de seu personagem, convencendo-nos que não se trata dele próprio? Dar a esta divagação ritmo suficiente para que possamos acompanha-lo, e ao mesmo tempo sermos surpreendidos ou uma ou outra decorrência desta ideia inicial.

Achei fantástico. Virei fã, e sem dúvida procurarei outros livros do autor.

Trecho Selecionado:

 - Porque para se ver é preciso fechar a vida em um átimo. Como diante de uma máquina fotográfica. A senhora assume uma pose. E posar é como se tornar uma estátua por um momento. A vida se move continuamente, e nunca pode ver a si mesma.
 - Quer dizer que eu, viva, nunca me vi?
 - Jamais como eu posso vê-la. Mas eu vejo uma imagem da senhora que é só minha – uma imagem que certamente não é a sua. A sua, viva, a senhora talvez a possa ter vislumbrado em alguma foto instantânea que lhe fizeram. Mas sem dúvida deve ter tido uma ingrata surpresa. Talvez tenha até relutado em se reconhecer naquela imagem descomposta, em movimento.
 - É verdade.
 - A senhora só pode reconhecer-se posando: estátua sem vida. Quando alguém vive, vive sem se ver. Conhecer-se é morrer.
(...)
Estou certo de que ela, assim como eu, depois daquela fala e de tudo o que já lhe dissera sobre o tormento do meu espírito, experimentou naquele exato momento a sensação de ver abrir-se à sua frente, desmesurada e tanto mais pavorosa quanto mais lúcida, a imagem de nossa irremediável solidão.
(...)
Todo o orgulho desmoronava.
Ver as coisas com os olhos que não podiam saber como os outros olhos a viam.
Falar para não ser entendida.
Não valia mais nada tentar ser alguma coisa para si.

E nada mais era verdade, já que nenhuma coisa era em si verdadeira. Cada um por sua conta a assumia como tal, apropriando-se dela para preencher a própria solidão e dar à sua vida uma consistência qualquer, dia a dia.

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Marcas de um futuro promissor

No caminhar do autor, em especial no Brasil, muitos são os argumentos para desistir. A falta de um mercado interessado, a pobreza de nossa formação básica, dificuldades econômicas, tudo isto dificulta. É por isso que admiro profissionais de diferentes áreas que se arriscam pela madrugada, iluminados pela luz pálida de seus computadores. Quando a casa está mais calma e o vinho fez efeito, emerge em diferentes lares o(a) corajoso(a) capaz de enfrentar a página em branco do editor de textos.

É por isto que gostei da iniciativa da editora de “Marcas na Parede” (Andross, 2009), de divulgar trabalhos que são as raízes para a carreira de autores iniciantes. Ver orgulhoso seu nome no livro (embora alguns textos da capa estejam com contraste ruim), expor-se à crítica de amigos, familiares e leitores anônimos, conhecer suas próprias deficiências e aptidões. Não há jeito fácil de fazer isto. É preciso se expor. Alguns o fazem em blogs, interessante alternativa, mas nada te prepara para o prazer de ver um livro com seu nome dentro.

Sei como pode ser intimidante lidar com um texto longo e uma narrativa com muitos acontecimentos e personagens. Começar pequeno é a chance de lapidar frases, conhecer a reação do leitor, enfim, experimentar ser autor num ambiente controlável. O texto pequeno é mais palatável a autores e leitores. Mesmo o mestre Machado de Assis, publicou seus “Contos Fluminenses” em 1870, antes de seus romances famosos, possivelmente exercitando-se para a maestria que apresentaria a seguir.

Há algo de novo nos filmes e livros de terror lançados ultimamente? Sempre giram em torno de nosso medos ancestrais: do escuro, do predador, de ficar sozinho, de morrer. O gênero “terror” é bastante batido, mas os autores de “Marcas na Parede” aceitaram o desafio e imitaram a coragem de seus personagens: entraram na sala escura, enfrentaram seus medos e demônios.  

Candelabros, casarões, cheiros pútridos, velas, monstros, maldições... “Marcas na parede” é composto por muitos contos, de três a seis páginas de duração, cheio dessas palavras e clichês, distribuídas pela imaginação de um número grande de autores. Trata-se de literatura juvenil, mais simples de acompanhar, com histórias curtas, poucos personagens, poucos acontecimentos. Ótimo para indicar para aquele amigo que acha “cult” o gênero, ou para quem ainda está treinando como leitor.


É nessa simplicidade que está sua maior virtude. Pode ser a porta de entrada para literaturas mais elaboradas no gênero, depois que sabe os policiais, e talvez direto para a literatura universal, quem sabe? Desarme seu senso crítico, e curta uns minutos de arrepiante leitura. Recomendo particularmente o conto de carnaval.

domingo, 2 de fevereiro de 2014

Nosso Leitor: Mentes Quietas e Vulneráveis...

“Mentes Inquietas” e “Mentes Perigosas”, de Ana Beatriz Barbosa Silva, chegaram a minha lista de leituras de um modo estranho. Estavam numa pilha de livros que o proprietário original não julgou dignos de guardar na estante. Foi meu primeiro aviso de que não eram tão interessantes, mas decidi ignorá-lo, curioso para entender porque a autora se tornou best-seller.

Sempre acho que ao ler um livro popular, vou desvendar por que fez sucesso. Acabei com algumas suposições, e algum desânimo também, que explico ao final.

A autora explica que as páginas visam trazer assuntos médicos e técnicos a um público leigo, mas idiotiza este público. As informações são rasas, cheias de dicas que considero ofensivas à inteligência do leitor, dada sua obviedade:

Ao dar dicas de relacionamento: “Tente sempre se colocar na posição do seu par. Lembre-se de que cada pessoa tem sua maneira de ser. Respeite o jeito do outro para que você também possa ser respeitado.”

SÉÉÉRIO???E por ai vai, dando dicas para professores respeitarem e terem paciência com as crianças, e outras informações nada valiosas. De onde vem isto? Você já viu um médico considerar o público leigo incapaz de entender algum assunto? Não, não acontece... Pois é, minha gente: a informação como mecanismo de submissão.

Mas se é raso, ofende a inteligência do autor, por que “Mentes Inquietas” fez sucesso e gerou uma sede da editora por mais pérolas da autora? Ora, todo mundo pode lançar um livro mais ou menos, mas aprende com a experiência do leitor, vai se desenvolvendo. Minha hipótese para este sucesso que desencadeou novos livros é: porque somos uns mimados. Isso mesmo! Num mundo individualista, em que os sucessos e fracassos são reputados ao indivíduo, sem considerar os fatores externos intervenientes, é ótimo termos uma desculpa para nossas dificuldades. Daí a formula mágica:

CRIAR IDENTIFICAÇÃO DO LEITOR COM O TEMA

Ana Beatriz escreve:

“De forma resumida, seguem algumas dicas que servem de auxílio para dar o primeiro passo rumo ao diagnóstico de TDA (Transtorno de Deficit de Atenção) em uma criança:
1) Com frequência mexe ou sacode pés e mãos, se remexe no assento, se levanta da carteira (...)
2)É facilmente distraída por estímulos externos(...)
3)Tem dificuldade de esperar sua vez em brincadeiras ou em situações de grupo (...)”

E por ai vai... 100% das crianças que conheço preenchem o critério diagnóstico simplificado pela autora. E nós todos já fomos crianças – assim... o primeiro objetivo foi atingido: criar identificação entre você e o tema. Você se descobre um TDA incompreendido.

DESCULPAR NOSSAS FALHAS

Agora que intimamente me sinto TDA, descobrirei sobre interpretação benigna da autora sobre o advento deste diagnóstico:

“Onde essa história se iniciou, não se sabe dizer; no entanto, a mudança no “foco” da questão possibilitou retirar o TDA da esfera moralista e punitiva e leva-lo para uma esfera científica e passível de tratamento. É isso o que realmente importa.”

O que se seguirá é uma discreta indução, mostrando primeiramente que as pessoas com TDA não têm realmente culpa por serem dispersas, por vezes desorganizadas, impulsivas. Um depoimento deixa isto claro:

“Só saber que eu era TDA tirou uma tonelada de meus ombros. Eu não era bagunçado porque queria ou porque era preguiçoso. Eu tinha dificuldades concretas mesmo!”

Não cabe mais ao TDA trabalhar a disciplina ou regular seu desejo, capacidade difícil para todos desenvolvermos, em maior ou menor grau. O TDA foi declarado incapaz disto, precisa de medicamento! Pode sentar enquanto o medicamento faz sua parte.

MOSTRAR NOSSOS PONTOS POSITIVOS

Agora que me sinto TDA, não me culpo por minhas indisciplinas e dificuldades com impulsos (que afinal são fruto de um determinismo biológico), posso agora olhar para o lado brilhante do TDA. A autora mencionam em vários momentos a necessidade de não olharmos os TDAs com uma postura julgadora e moralista, mas faz um julgamento moral no sentido contrário. Na escolha dos depoimentos, os TDAS são figuras criativas, de ritmo mais forte e maior perspicácia, diferentes dos medíocres normais:

“Costumávamos acampar com amigos até que resolvemos que seria melhor viajarmos sozinhos, pois ninguém acompanhava o nosso ritmo.”(...)

Ou várias citações atribuindo aos TDAs uma chave extra para as invenções do mundo. Há até uma lista de possíveis TDAs, como Einstein, Fernando Pessoa, entre outros ilustres...

E O SEGURO DA AUTORA: INFORMAÇÕES CIENTÍFICAS

Para não ofender seus iguais, a autora coloca uma serie de relativizações, estas sim com fundamento teórico. Informa que o diagnóstico de TDA depende  de muita observação (igualzinho vemos os psiquiatras fazerem antes de receitarem ritalina para crianças), que tudo é uma questão de grau, e que somos mesmo mentes diferentes tanto genética quanto no âmbito do comportamento.

Isso é verdade e claro no livro. Aliás, isto redime a leitora, e utilizo isto aqui também. É lógico que há pessoas com dificuldades fundamentais de concentração. O que não fica claro é a base ideológica para a decisão médica de criar este critério diagnóstico. Estatística! É possível traçar uma curva normal (normal para a estatística é o que é mais frequente) para os níveis e atenção e capacidade para disciplinar nossos desejos imediatos, e quem sai da norma é transtornado!

No “Mentes Perigosas”, encontramos uma autora mais à vontade. Ela agora é famosa, e vai variando títulos e o assunto principal, mas a formula se repete. Há a óbvia diferença de que não se pode empatizar os leitores com psicopatas. Nesse caso, você ficará melhor como vítima desses verdadeiros “lobos em pele de cordeiro”. Não há aqui um interesse em retirarmos um olhar julgador sobre o fenômeno da diversidade genética. Aqui é possível considerar esses “facínoras” como o mal personificado.

Se você foi prejudicado, não é porque estava indefeso ou lhe faltava experiências para avaliar o comportamento do outro e evitar um golpe. Claro que você nunca banca o bobo e é incapaz de se iludir! Afinal, você não tem culpa de haver maldade no mundo. Os psicopatas são seres moldados pelos seus objetivos pessoais e dispostos a tudo para obter o que querem. Nossa sociedade é em parte culpada por não puni-los ou mesmo por valorizar o individualismo, mas enquanto discutimos isto, eles estão lá, tramando pelos seus objetivos.


O desânimo que senti ao lê-los? Li dois livros da autora - para mim já deu. Como leitores somos ingênuos, e as editoras se aproveitam disto. Num sucesso embarcam outros, enquanto alguns bons trabalhos permanecem na fila de espera. A lógica não é a de cativar uma clientela com títulos de qualidade. É só vender mesmo, e ainda o fazem com falhas de logística e distribuição, basta ver a falta de títulos e a bagunça nas livrarias. Nosso futuro reserva apenas livros em série, títulos sobre liderança e autoajuda? Parem o mundo! Quero descer....

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Esperança no Ser Humano?

Gosto de aproveitar o que posso de cada leitura. Enquanto lemos, nossa cabeça viaja, associando seu conteúdo a nossas experiências pessoais, leituras anteriores, opiniões. Resulta disto que muitas vezes não é o livro em si que faz mover as engrenagens da cabeça.  As vezes, o enredo e personagens tão trabalhados pelo autor tornam-se meros panos de fundo, e o prazer da leitura deriva de uma experiência muito pessoal, exclusiva. Puxamos um fio do novelo do autor, e por vezes corremos algumas páginas com olhares vidrados, dando pouca atenção ao que está à frente dos olhos, concentrados no que está atrás deles.

Acho que aproveitei mais de meus pensamentos pessoais do que d´A Cidade do Sol em si. Não me levem a mal. O Best-seller de Khaled Hosseini tem muitas qualidades. Edição bem feita, bem traduzida (me pareceu), tem ritmo bom, tema interessante, mas desde o início você já sabe qual será sua fórmula. O autor vai explorar o tema da opressão da mulher no regime Talibã.

No balanço, mostra a capacidade humana de fazer coisas terríveis uns aos outros, bem como a resiliência do ser humano, capaz de lutar contra tudo e contra todos. A opressão da violência sexual, colocada em comparação com a beleza do amor maternal. É bonito, mas batido também. Foi nesse ponto que minha cabeça “derivou”, por assim dizer.

Devemos pensar historicamente. Há poucas gerações, governos ocidentais faziam execuções públicas com enforcamento ou guilhotina. Era aceito na época. Hoje não é mais, e choca nossa opinião quando alguém infringe uma lei que não entendemos, e sofre uma punição que consideramos bestial. Então, qual seria o limite entre as diretrizes pelo respeito ao ser humano, e o respeito a diferenças culturais e valores? Como decidir (e impor a outros povos) o que é certo ou errado?

Acho que o ponto de equilíbrio está num lindo documento de 10/12/1948. A declaração Universal dos Direitos Humanos é uma obra que respeita diferenças, mas estabelece um “ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações”. Infelizmente, muitos de nós preferimos ignorar as premissas deste documento, e continuar investindo em argumentos que nos separam – religiosos, nacionalistas, políticos, étnicos, etc.


Não perco a esperança. Gosto de pensar que nossa evolução, por dolorosa e lenta que possa parecer, é também inevitável. É essa minha expectativa para as mulheres afegãs representadas no livro de Hosseini. É minha expectativa que cada opção por um comportamento gentil e respeitoso contribua para o mundo que quero deixar para meus filhos. Utopia?

domingo, 5 de janeiro de 2014

Leitura Escolar: O Primo Basílio

Mais uma releitura para ressignificar aquela sensação que a gente tem quando é obrigado a ler algo para a escola. Com “O primo Basílio” tinha sido assim. Li por obrigação, há muitos anos. As escolas são ótimas para ensinar como não gostar de ler.

A novidade nessa releitura? “O primo Basílio” é um livro delicioso! Cuidadoso na forma e com ritmo muito bom. Embora lido numa edição barata (com papel feio, letras miúdas e pouco espaço entre linhas), não me cansou nem um minuto, e mesmo obrigou a postergação das horas de sono em algumas oportunidades.

Eça de Queiroz é reconhecido por suas críticas sociais. Já tinha visto este lado do autor em “O Crime do Padre Amaro” (tem uma resenha minha no Dose Literária). O que mais me chamou a atenção, para além das críticas sociais bem pertinentes, foi a boa construção das personagens.
O autor tem uma interessante maneira de mostrar como nossa percepção do mundo é dependente de nosso estado de ânimo. Ele descreve o ambiente num dia de bom humor de Luísa:

“Era uma manhã deliciosa. Havia um ar transparente e fino; o céu arredondava-se a uma grande altura com o azulado de certas porcelanas velhas e, aqui e além, uma nuvenzinha algodoada, molemente enrolada, cor de leite; a folhagem tinha um verde lavado, a água do tanque uma cristalinidade fria; pássaros chilreavam de leve com vôos rápidos.”

... ou num dia em que a personagem não está tão confiante:

“Assim um iate que aparelhou nobremente para uma viagem romanesca vai encalhar, ao partir, nos lodaçais do rio baixo; e o mestre aventureiro, que sonhava com os incensos e os almíscare das florestas aromáticas, imóvel sobre seu tombadilho, tapa o nariz aos cheiros dos esgotos.”

Em diferentes momentos, as personagens do livro (principais ou secundárias) se visitam. Quando travam suas discussões e interações, é muito engraçado – e um irônico retrato da realidade – como os interlocutores não se ouvem. Cada um em seu mundo, retomando seu foco em sua vez de falar, ignorando completamente o que foi tratado pelo outro há segundos atrás.

Todos fazemos isto, em maior ou menor medida. Muitas vezes escutei boas dicas, mas só fui capaz de entende-las quando era tarde demais para evitar uma dura lição. Do outro lado, já sugeri linhas de ação a clientes e alunos, e vi claramente que não entendiam o que eu priorizava – escolhendo agir diferente - para retornar após um tempo reconhecendo que eu estava certo. Me divirto agora, lembrando que muitas vezes faço resenhas de livros sem ler as de outros leitores, esquecendo o fator enriquecedor gerado por outros pontos de vista.

Não sei ao certo por que hesitamos tanto em beber da experiência dos outros. Acho que nos acreditamos especiais, impedindo-nos de aplicar a experiência dos outros a nossa existência. Não enfiamos o dedo na tomada, isto é certo, mas nos atiramos às paixões (materiais ou imateriais) como perfeitos idiotas, na crença de que “desta vez é diferente”.

E você, já reconheceu a existência (e inteligência) dos outros?