quarta-feira, 27 de novembro de 2013

A Assustadora História de Nossa Ignorância

Muito bom o livro de Richard Gordon “A assustadora história da medicina”. Seu estilo é de humor ácido, destacando como esta aparentemente distinta ciência viveu muito tempo de misticismo, chutes, ou acasos, até que fossem descobertas algumas de suas bases.

Quando eu tinha 15 anos, imagino que como todo mundo, minhas ideias sobre a vida eram deveras incompletas, distorcidas. Certezas categóricas que se provaram absurdos completos, muitas vezes. Da mesma forma, minhas ideias aos 38 possivelmente parecerão esdruxulas ou incompletas quando eu tiver 60. É justo pensar assim?

Que dizer então da evolução da ciência? Nossas ideias no inicio do século XX parecem absurdas, e em breve nós veremos o quão idiotas somos ao tratar (ou padecer) de certas doenças que no futuro serão dominadas.

Sem métodos para estudar fenômenos estatísticos, comunicar diferentes experimentos e especialistas, a medicina, tal como outras ciências, engatinhou até o século 20. Absurdos completos foram defendidos, da famosa trepanação (tratamento que consiste em fazer um furo no crânio, para fazer saírem os maus espíritos) até o completo desconhecimento sobre micróbios e a necessidade de operar em ambiente limpo.

Exercer a medicina era lidar com algo religioso – o território da morte e da dor, que outrora eram explicados e tratados com a religião, diretamente. Não por acaso, sempre houveram atritos entre os médicos e o clero. É dai também, imagino, que se iniciou o desproporcional status da profissão. Ainda há algo de místico na silhueta destes profissionais, que outrora utilizaram a bengala de ouro, e hoje usam jaleco e estetoscópio no pescoço. Suas falas cheias de certeza muitas vezes me lembram do adolescente de 15 anos supra-citado.

Enfim, voltando ao livro, o desenrolar tem ritmo bom, e muitos fatos interessantes, que explicam os nomes das doenças, de alguns pontos de nossa anatomia, ou mesmo de procedimentos e tratamentos. É bonito constatar nosso avanço.  Numa critica pontual, depois da página 170 o livro parece perder energia (o autor teria se cansado? Ou foi apressado pelo editor?). Há algumas frase repetidas no livro – que eu entendo fruto de edições desastradas.

É inequívoco o avanço, e com todos os recursos que temos, as pesquisas hoje seguem mais rápido do que as pessoas são capazes de acompanhar. O médico do futuro terá que se especializar ainda mais – e talvez tenhamos mais degraus para transpor na busca por solucionar um desconforto abdominal – do que só a visita ao clinico geral e ao especialista. Talvez tenhamos que ter novos degraus: sub-especialistas e ultra-especialistas. Talvez seja o destino de toda a ciência.

Só sei que hoje já e assim: se todos tivessem acesso à melhor medicina, já estaríamos quebrados como economia mundial. É uma equação que não fecha. Vamos torcer para encontrarem respostas baratas.

  
Frases selecionadas (ou pílulas de sarcasmo):

“Cientificamente, embora seja deprimente, não passamos de sacos à prova d´água cheios de produtos químicos carregados de eletricidade, que um dia sofrem uma pane de força."

 (sobre as primeiras tentativas de vacina para varíola) “É difícil imaginar se isso reprimiu ou fortificou sua idéia de que os médicos dão medicamentos que mal conhecem, para curar doenças que conhecem menos ainda, para seres humanos dos quais não sabem absolutamente nada.”

“Como sempre acontece na medicina, os médicos continuaram a discutir e os pacientes continuaram a morrer.”

“Os médicos da era vitoriana eram brilhantes na identificação de todas as doenças cuja cura eles desconheciam por completo.”


“Como Lister descobriu a assepsia, sem saber coisa alguma sobre estreptococos, e LInd curou o escorbuto sem conhecer a vitamina C, assim também Darwin fundou a genética, sem saber ciosa alguma sobre o ADN (*DNA – o tradutor também traduziu a conhecida sigla).

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Não aprendi a gostar de poesia

Quando pequeno, fiz aulas de piano por um bom tempo. A prática me aproximou de autores do período barroco, clássico e romântico, com claras influências em minha forma de ouvir música. Desse aprimoramento de meus sentidos, aprendi a apreciar algo mais elaborado, curtir e empatizar com as emoções que afloram quando ouço uma música – e também apreciar a evolução da técnica, o momento histórico – e mesmo a tecnologia que se desenvolvia nos instrumentos e orquestras para proporcionar grandes espetáculos.

Já com a poesia, foi diferente. Poesia tinha cara de tarefa de escola, de prosa com exigências de rima e métrica. Grilhões e regras que me impediam de traduzir meus pensamentos e sentimentos. Coisa de românticos piegas, ou de vaidosos, que por acharem fácil fazer prosa, complicaram-na com outras exigências.

Reconheço que não é assim para todo mundo. Outras pessoas refinaram suas habilidades e conseguem aproveitar a poesia. Não é verdade que não me sensibilizo – em especial com Fernando Pessoa, Manuel Bandeira, Vinícius de Moraes – mas a leitura recente de “Melhores Poemas – Cecília Meireles” foi árida para mim. Passei por todos os poemas, reconheci sua qualidade, entendi (acho) seus propósitos, mas gostar, gostar mesmo, uns três ou quatro. Num livro de mais de 180 páginas...

Fica então meu pedido de ajuda para encontrar algumas respostas. O que te faz gostar de poesia? Como posso trilhar este caminho? Ou devo me resignar e entender que não é meu estilo preferido de leitura?

Trecho selecionado:

Até quando terás, minha alma, esta doçura,
Este dom de sofrer, este poder de amar,
A força de estar sempre – insegura – segura
Como a flecha que segue a trajetória obscura,
Fiel ao seu movimento, exata em seu lugar...?

(fevereiro 1955) – Cecilia Meireles

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Crônica de um sucesso anunciado

Como o título já foi o spoiler, não hesito em avisar que há uma morte no livro! Mas isto é tão acessório! Tudo fica na habilidade do autor em te contar uma história – te climatizar.

Na receita para um bom romance, o ritmo tem que ser bom – e Marquez foi mestre neste livro. Dava para ter lido num fôlego só.Livros também me interessam quando o personagem central é franco - verossímel, um destaque em alguma característica, mas aquela sensação de que não atingiu todo o seu potencial - como todos nós. Deve entregar-se a vida, seja ao desejo, ou a uma situação desafiadora – ambas aventuras que são como corredeiras: você embarca no fluxo das águas, mas não consegue controlar nada durante a viagem.

Marquez nos mostra a irmandade entre os povos de origem latina. Ao longo do livro, compreendemos completamente e nos deliciamos com os detalhes das fofocas, versões, ambientes e intenções. Somos capazes de acompanhar a importância de cada relato. Será que leitores de outros continentes saboreiam este autor na mesma intensidade?
Vemos os anacronismos de nossa vida cotidiana, dos hábitos dos homens de beberem e irem a puteiros, parecendo independentes, mas tão manipuláveis. Das exigências das mulheres guardarem sua virgindade e cuidarem da roupa e da cozinha, mas definirem os destinos com base em sua trama de comentários e relacionamentos. Hábitos que permanecem no imaginário latino, mesmo após séculos de luta pela igualdade entre os gêneros. As vaidades, os símbolos de status, as diferenças sociais tão típicas de nosso continente estão explicitamente retratadas no povoado e personagens descritos na trama. Qual a receita que produziu as desigualdades sul-americanas? Como mitiga-las?

Frases selecionadas:

“ A única coisa que minha mãe censurava nelas era o costume de se pentear antes de dormir. “Meninas”, dizia-lhes, “Não se penteiem de noite que os navegantes se atrasam”. Exceto por isso, pensava que não havia filhas mais bem educadas. “São perfeitas”, ouvia-a dizer com frequência. “Qualquer homem será feliz com elas, porque foram criadas para sofrer.””

“Convenceram-na, enfim, que que a maioria dos homens chegava tão assustada na noite de núpcias que era incapaz de fazer qualquer coisa sem a ajuda da mulher e na hora da verdade não podia responder por seus próprios atos.”

“As luzes estavam apagadas, mas logo que entrei senti o cheiro de mulher morna e vi os olhos de leoparda insone na escuridão, e depois não voltei a saber de mim mesmo até que começaram a soar os sinos”

“Nasceu de novo. “Fiquei louca por ele”, disse-me, “louca de pedra.”, Bastava-lhe fechar os olhos para vê-lo, ouvia-o respirar no mar, o calor de seu corpo acordava-a à meia noite na cama.”

“Numa noite de bom humor, derramou o tinteiro sobre a carta terminada e em vez de rasga-la acrescentou num post-scriptum: “Como prova do meu amor, envio-lhe minhas lágrimas”

sábado, 26 de outubro de 2013

Nauseante coragem – A paixão segundo G.H.


(os trechos entre aspas são do livro)

A aba da capa apresentava o pequeno enredo, uma desculpa para a construção de sua filosofia.

 “ Esse esforço que farei agora por deixar subir à tona um sentido, qualquer que seja, esse esforço seria facilitado se eu fingisse escrever para alguém.”

Assunto difícil. Olhar para os olhos vítreos de uma barata, e compreender sua vida, sua passagem fugaz e desimportante pelo tempo – e associá-la ao sentido da vida humana, correlacionando-os no divino.

Enfrentar o desafio de escrever sobre o sentido da vida exige coragem. Especialmente quando se evolui para descobrir sua ausência de sentido, ausência de solo firme. Buscar algo em que se apoiar é como florear nossa existência, atribuindo-lhe propósitos abstratos. Nossa vida passa despercebida diante da vida em seu todo, sejamos baratas, Mozart ou Einsten.

“O perigo de meditar é o de sem querer começar a pensar, e pensar já não é meditar, pensar guia para um objetivo.”

Meditar sem objetivo, mas chegar a um. E ao perceber ter espremido toda a vaidade de sua percepção da vida, apresenta-la como experiência, contra as dificuldades de na língua em expor tal abstração, sem sentir-se envaidecida com o resultado.

“Ou não querer ter vaidade é a pior forma de se envaidecer?”

Mas ao fazê-lo com maestria, mostra sua habilidade de escritora. Como tornar poética a descrição de uma barata esmagada?

“Ela era arruivada. E toda cheia de cílios. Os cílios seriam talvez as múltiplas pernas. Os fios de antena estavam agora quietos, fiapos secos e empoeirados. A barata não tem nariz. Olhei-a, com aquela sua boca e seus olhos: parecia uma mulata à morte. Mas os olhos eram radiosos e negros. Olhos de noiva”


Obrigado, Clarice. Na despedida do livro, vi sua foto na contra-capa. Reparei em sua beleza fria, estrangeira, delicada e rude ao mesmo tempo. Seu olhar também é prenúncio de sua força.

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

O momento do leitor - "A idade da Razão"



Sempre que a leitura de um livro começa a empacar, procuro rever minhas impressões em busca de um “fio” a seguir. Procuro um propósito para o que está escrito ou para a forma como está escrito, peço ajuda na internet buscando por opiniões que forneçam alguma luz, leio uma biografia do autor e algumas resenhas, procuro compreender qual era o mundo em que o livro foi escrito, a que ideias foi exposto o autor.

Alguns livros mostram este “fio” que estimula a leitura ao proporem uma história empolgante, ou visitarem difíceis recônditos da alma humana, ou repisarem uma experiência real ou fictícia para compreendê-la em seus odores e sabores.  Há outros que tentam uma estética ou estilo novos, e há aqueles que não consigo colocar numa dessas categorias, mas que sobrevivem nos pequenos lampejos de genialidade, em trechos bem escritos. Qualquer uma dessas razões já foi suficiente para que eu cumprisse minha promessa (de terminar cada livro que começo), e tirar alguma coisa de bom dos momentos dedicados a um título.

Confesso que demorei a achar esse “fio” no livro de Sartre – “A idade da Razão”, que inicialmente me pareceu apenas um exercício hipotético de suas propostas filosóficas, no caminhar claudicante ( e devo dizer tedioso) da sua personagem principal. Mas seria só isso? Ou eu que achava “só isso”? Por que eu classificaria como “pouco”, poder ler um filosofo reconhecido, nobel de literatura, exercitando suas ideias? Mas a verdade é que minha primeira impressão de “A idade da razão” foi a de um livro cansativo.

Seria o livro? Seria eu? Ambos, provavelmente. Já aconteceu com todo mundo, não gostar de um livro num primeiro contato, e depois saboreá-lo em outro momento da vida. É possível que me falte maturidade como leitor para “A idade da Razão”.  É possível que não seja o momento certo. Sartre é para mim um quebra-cabeças desmontado, e não possuo a foto da caixa. Li sobre seu romance não-monogâmico com Simone de Beuvoir (que fez ela além de ser devassa para os padrões da época e namorada dele?). Vi uma foto dele em Cuba, com Che Guevara e Simone. Sartre que não queria distinções, mas convivia com figuras famosas de sua época. Queria estar “onde as coisas aconteciam”? Uma celebridade num tempo sem paparazzi ou tablóides?

Recomendo como desafio. E humildemente anseio por ajuda – para quem sabe um dia seguir lendo os outros livros que continuam a trama de “A idade da Razão”. Com coragem, acabei encontrando alguma coisa para me interessar, em diferentes trechos, que tento representar nos excertos abaixo:

(ao discutir a possibilidade de um aborto):“ - Deram-me um pacotinho depois da operação e me disseram: “Jogue isso na privada”. Numa privada. Como um rato morto! Mathieu – disse ela, apertando-me fortemente o braço – você não sabe o que vai fazer!
 - E quando a gente põe uma criança no mundo, a gente sabe? – perguntou Mathieu encolerizado. Uma vida! Uma consciência a mais, uma pequena luz perdida , que voaria em círculo, se chocaria contra as paredes e não poderia escapar.”

(ao beijar Ivich – já se sentiu assim ao fazer o primeiro movimento?): “Era amor. Agora era amor. Mathieu pensou: “que foi que eu fiz?” Cinco minutos antes aquele amor não existia; havia entre ambos um sentimento raro e precioso, sem nome, que não se exprimia por meio de gestos. E Eis que ele fizera um gesto, o único que não devia fazer, aliás não o fizera propositadamente, aquilo viera sozinho. Um gesto e aquele amor aparecera diante de Mathieu como um grande objeto importuno e já vulgar. Doravante, Ivich pensaria: “ele é como os outros”, e, a partir daquele momento, Mathieu amaria Ivich como as demais mulheres que amara.”

(numa experiência angustiada) : “Caminhava em silêncio, somente seus passos ecoavam na sua cabeça, como uma rua deserta pela madrugada. Sua solidão era tão total sob aquele céu, acariciante como uma consciência limpa, no meio daquela multidão atarefada, que ele se sentia espantado de existir; ele devia ser o pesadelo de alguém, de alguém que acabaria acordando.”

(UFF...esse momento foi tenso): “Morta a serpente, morre o veneno (...) Apoia a mão na mesa, ela responde à pressão com uma pressão igual, nem mais, nem menos. As coisas são servis. Dóceis. Manejáveis. “Minha mão fará tudo sozinha.” Boceja de angústia e tédio. De tédio mais ainda que de angústia. Está sozinho naquele cenário. Nada o impede de resolver; nada o impede. Tem que decidir sozinho. Seu ato não é senão uma ausência. Aquela flor vermelha entre as pernas não está ali; aquela poça vermelha no soalho não está ali. Olha o soalho. É liso, unido, não tem lugar para mancha. “ Estarei deitado no chão, inerte, a braguilha aberta e melada, a navalha estará no chão, cega, inerte” Contempla fascinado a navalia, o soalho; se pudesse imaginar nitidamente a poça vermelha e o ardor, de um modo suficientemente nítido para que se realizassem por si, sem que precisasse fazer o gesto! “A dor eu aguento. Quero-a, chamo-a. Mas é o gesto, o gesto.”


segunda-feira, 19 de agosto de 2013

A Elegância da Literatura (Do Ouriço)

A Elegância do Ouriço - Muriel Barbery

Comecei-o em doses pequenas – poucas páginas por vez – pois estava terminando outro livro. Pareceu como tarde de degustação de cachaça, que a cada dosezinha vai nos afeiçoando, descendo mais fácil, sensibilizando, abrindo novas visões e sabores, fluindo.

Inicialmente, você tem a impressão de que é sobre a arrogância intelectual, ou sobre a futilidade da vida dos ricos e acadêmicos. As personagens, paradoxalmente, colocam-se arrogantemente num patamar acima desses que criticam, e são amargos, como os que despertaram do cotidiano e se perceberam em meio à vida fútil que a maioria vive.

Consegue então fazer crítica de si próprio: se por um lado valoriza o constante aculturar-se, por outro relativiza sua importância, ao lembrar que o bicho-homem está sempre (no fundo) atrás apenas de sexo e status (para conseguir mais sexo). Reconhece que não há inteligência na escolha por pensamentos infelizes, e esta reveladora conclusão dá ao livro uma dose de humildade que o abrilhanta ainda mais.

Constrói as personagens, nos afeiçoa a suas ideias sobre o sentido da vida, promove deliciosos encontros, e novas conclusões sobre este sentido. Faz-nos sentir como é especial encontrar e empatizar com seres humanos com gostos parecidos, que confirmam nossa visão do mundo, ou a questionam num nível que nos desafia e interessa. Refleti, ao escrever este parágrafo, que é por isto que escrevo minhas resenhas – para encontrar por ai pessoas que enxergam parecido, ou que se deixem instigar pelo que penso, mesmo que anonimamente.

É delicioso como a autora escreve frases profundas, bem elaboradas. Como se tivesse sido escrito por minha irmã, é de uma sagacidade! Cáustico! Sugere livro bem trabalhado, com verdadeiros trechos de “arte”. Vale muito a leitura. Um novo clássico. Diversão garantida que entrou para a lista dos meus preferidos.

Frases selecionadas:

 “...que nada é mais duro e injusto do que a realidade humana: os homens vivem num mundo emq eu são as palavras, e não os atos, que têm poder, em que a competência última é o domínio da linguagem.”

“Quando as linhas se tornam seus próprios demiurgos, quando assisto, qual um milagroso ato inconsciente, ao nascimento no papel de frases que escapam  à minha vontade e que, inscrevendo-se na folha apesar de mim, ensinam-me o que eu não sabia nem acreditava saber, gozo desse parto sem dor, dessa evidência não concertada, que consiste em seguir sem esforço nem certeza, com a felicidade dos espantos sinceros, uma pluma que me guia e me transporta.”


“(...) toda essa vida em que nos arrastamos, feita de gritos e lágrimas, risos, lutas, rupturas, esperanças desfeitas e chances inesperadas: tudo desaparece de repente quando os coristas começam a cantar. O curso da vida se afoga no canto, há uma impressão de fraternidade, de solidariedade profunda, de amor mesmo, e isso dilui a feiura do cotidiano numa comunhão perfeita.”

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Sobre Constantino "Tolstoi" Lievin

Hesitei bastante em começar o “Ana Karênina” (que eu insistia em ler como se o circunflexo lá não estivesse). Volume grande, letras pequenas, difícil manuseio. O nome do autor traduzido “Leão Tolstoi” também não convidava... mas por que tanta unanimidade sobre este clássico? Eu precisava saber.

Foram algumas boas semanas até termina-lo. Não porque fosse chato, pelo contrário. Tolstoi tem grande habilidade para descrever discussões em torno de uma mesa de jantar, e tornar aquilo interessante para nós. Seu artifício é simples – típico dos romances psicológicos. O autor faz a gente entrar na cabeça das personagens. A construção das respostas e pensamentos são muito boas. Em especial na descrição das duplas amorosas, uma percepção destacada que o autor tem do universo feminino (e ainda bastante atual – quando se trata de sentir-se aceita ao conseguir um parceiro).

Há ainda um componente político no livro. Aliás, essas reflexões, importantes em especial na personagem de Constantino Lievin, permitem uma ligação importante entre a biografia do autor e esta figura por ele criada. Tolstoi deve ter feito o livro grande como uma cebola protetora para poder ali colocar suas reflexões em segurança. Como sua personagem, também opta pela vida em simplicidade.

A opção por simplicidade é uma resposta para a vida. Consome menos recursos, e nos faz menos escravos da materialidade. Há menor chance de explorarmos outros, mas também, menos contribuição para a roda de consumo que sustenta nossa sociedade, tal como é arranjada. Você ajuda ao contratar uma empregada doméstica e a paga na média do mercado? OU você a explora e a impede de exercer seu potencial como ser humano fazendo outra coisa? Uma discussão que espero que não fique entre aqueles que dividem o mundo entre o preto e o branco.

Por trás das escolhas políticas, permanece a relação do ser humano com sua biologia. Não são os jogos de poder, ou a hipocrisia da sociedade que fazem um homem e uma mulher se unirem. Estes são apenas o palco onde tais disputas ocorrem, motivadas por um imperativo animal. Os seres humanos são (também) animais. Ainda há inúmeros mecanismos de sedução por desvendar nesta espécie, mas a hierarquia social e o status sem dúvida têm relação íntima com o tema.

E é nas disputas de status social, inerentes ao jogo sexual, que as convicções políticas também se tornam importantes. Não é bastante adotar um estilo de vida que o faça mais feliz. É preciso alardear isto, conseguir que isto se torne um símbolo distintivo que faça suas escolhas parecerem melhores que a de outros. Para muitos, não bastará ser vegetariano. Será preciso militância pública. Não bastará ter o direito, será preciso afirmá-lo como um distintivo social – de fundo hierárquico/sexual.


Para Tolstoi – senhor de sua atuação política, mas escravo da biologia, não bastou apenas escolher a vida simples. Era preciso difundi-la e dela fazer propaganda para a família e demais relações. Num extremo tragicômico, segundo sua biografia (wikipedia), aos 82 anos decidiu sair de casa em busca da vida simples com valores que sua família não podia compartilhar. Viajou na terceira classe (mais simples), pegou pneumonia e morreu.  A morte sim, é algo que sempre nos igualou.

quinta-feira, 23 de maio de 2013

Mais um Victor Hugo Cinematográfico


Os Trabalhadores do Mar – Victor Hugo

Ao começar a leitura do terceiro Victor Hugo de minha prateleira, logo de início já recebi um presente. A coleção da Abril Cultural – “Os imortais da Literatura Universal” inicia esta edição e Julho de 1971:

- Tradução de Machado de Assis
“O texto de “Os trabalhadores do mar” que aqui publicamos é o da segunda edição da tradução de Machado de Assis, feita em 3 volumes, pela Tipografia Perseverança, RJ, em 1866, e citada no “Dicionário Bibliográfico Brasileiro” de Augusto V. Alves Sacramento Blake (vol.IV, Pag 197, ed Imprensa Nacional, Rio, 1898). Atualizamos apenas a ortografia e permitimo-nos emendar alguns evidentes erros tipográficos. Conseguimos esse texto, hoje em dia bastante raro, do Dr Plínio Doyle, que mui gentilmente nos permitiu reproduzir, em xerox, um exemplar de 1866 de sua propriedade.”

Não tenho conhecimento técnico sobre tradução. Sou apenas um apaixonado por livros. Acho que a tradução é quase uma adoção – ou co-autoria. A obra do mestre Victor Hugo, traduzida por outro Mestre, só podia encantar! Eu me lembro de ter comentado em uma resenha recente, que estranhava a antiguidade da linguagem de uma tradução. Me questiono quando uma tradução deve ser atualizada – e agora mais especialmente – quando ela NÃO deve ser alterada.

Victor Hugo continua bastante “cinematográfico” para mim. A própria escolha da “gente do mar” para contar suas histórias já dá mais profundidade  à obra. As viagens ao mar permitiam literalmente ir além do horizonte, conhecendo o mundo, relativizando suas verdades culturais. Que caldo mais nobre para o fortalecimento da alma humana?

Seu desenrolar das histórias em diferentes núcleos de personagens que se cruzam (que comentem em resenhas anteriores), faz com que se crie uma espécie de cumplicidade com o leitor. Assim, ele pode num capítulo descrever um vulto, com uma determinada roupa, que desempenha determinadas atividades, sem nunca citar qual o personagem, mas com a certeza de que sabemos qual é , e de que continuamos no “fio” da história. O ambiente inteiro é descrito, sem que esta exposição seja enfadonha. Você conseguirá sentir a brisa, o cheiro de mar, a rispidez do solo, o ferimento numa pedra pontiaguda, a dificuldade de uma peripécia.

Em alguns trechos, o emocional vai crescendo – e você intui o que vai acontecer. Ainda que previsível, uma alegria te invade quando suas expectativas se confirmam, qual uma criança que ganha o que tinha pedido. Te faz correr pelas páginas, perder um pouco do sono noturno, atrasar o próximo compromisso, protelar uma tarefa importante – continuar colado no livro.

Seu ritmo é ágil, e não há trechos áridos, como em “O corcunda..” ou “Os miseráveis..”. Nada é excessivo – tudo compõe os personagens e cenários. Agora com 3 livros dele no currículo, reconheço seus personagens masculinos como sobreviventes fortes, unidirecionais – ou muito bons, ou muito maus. Não mudam de ideia, mas se entregam ao amor romântico. Já os femininos são dominados pelas emoções. Passam por dificuldades, mas não renunciam a seus sentimentos e vontades – desapercebidas de seu poder.

Para quem quer conhecer o autor, fica a dica – mas eu iniciaria por “Os Miseráveis”.

Trechos selecionados:

“Havia nele a ligação do alucinado e do iluminado. A alucinação entra na cabeça de um campônio como Martin, do mesmo modo que na cabeça de um rei como Henrique IV. O Desconhecido faz surpresas ao espírito do Homem. (...) Resulta daí um mistoerioso estremecer de ideias: o doutor dilata-se até o vidente, o poeta até o profeta...”

“Em certos pontos, a certas horas, contemplar o mar é sorver um veneno. É o que acontece, às vezes, olhando para uma mulher.”

“Tem mistérios aquele canto; uma virgem é o invólucro de um anjo. Feita a mulher, desaparece o anjo; volta, porém, depois trazendo uma alma de criança à mãe. Esperando a vida, aquela que há de ser mãe algum dia, conserva-se muito tempo criança, a menina persiste na moça; é uma calhandra...”

quarta-feira, 1 de maio de 2013

Viagens de Gulliver - Algumas Viagens na Maionese


Minha intenção ao escolher este livro, foi a de continuar preenchendo minhas lacunas na leitura de clássicos mundiais. Esta obra de Jonathan Swift está certamente listada entre os mais lidos, mas confesso que sua leitura foi um pouco cansativa para mim. Eu vinha de uma sequencia de literatura mais adulta, e senti falta das frases mais pesadas e reflexivas. O livro todo é cheio de nomes que achei infantis, como “Glubdubdrib” ou “Luggnagg”.

Foi traduzido como “Viagens de Gulliver”, mas seu nome de lançamento foi “Travels into Several Remote Nations of the World, in Four Parts. By Lemuel Gulliver, First a Surgeon, and then a Captain of several Ships” (trad: Viagens para várias nações remotas do mundo, em quarto partes, Por Lemuel Gulliver, primeiro um cirurgião, e então o capitão de vários navios”). Antes de ler o livro, todas as vezes em que olhava para ele na prateleira lembrava de duas coisas: o antigo desenho “As aventuras de Gulliver” (tem aqui: http://youtu.be/YVFq2e0sCeo ) que eu assistia quando criança, e as cenas mais adultas de “Laranja Mecânica”, em que Alex usava a palavra Gulliver, como gíria (“Mum, I can't go to school today, my gulliver hurts” e “Yesterday we attacked this old man in the ally, he was being obnoxious, we hit got him right in the Gulliver”).

É possível que ele tenha feito alusão aos países reais e suas relações ao descrever suas viagens. No entanto, isto é bastante sutil, e não parece ser mais importante do que o entretenimento e histórias fantásticas. Mas explica:

“Isso talvez pareça ao leitor uma história antes ocorrida na Europa ou na Inglaterra, do que em país tão remoto. Digne-se, porém, considerar que os caprichos femininos não são limitados por nenhum clima ou nação, e são muito mais uniformes do que podemos supor.”

E dá lampejos de crítica social:

“As vezes, a briga entre dois príncipes é para decidir qual deles desapossará um terceiro dos seus domínios, aos quais nenhum tem direito algum; ás vezes, um príncipe briga com outro porque tem medo que o outro brigue com ele; as vezes, inicia-se uma guerra porque o inimigo é demasiado forte; outras, porque é demasiado fraco; as vezes, os nossos vizinhos querem as coisas que temos, ou têm as coisas que queremos, e ambos lutamos até que eles nos tomem as nossas, ou nos dêem as suas.”

Causa alguma emoção no início da leitura, uma vez que todos nós já ouvimos falar da viagem a Lilipute. A cena dele sendo preso por pequenos homenzinhos numa praia, com estacas e cordas, é uma das mais frequentemente mencionadas. O livro tem várias adaptações: cinema, música, versões ilustradas, teatro, quadro, etc. - mas não entendi por que todos se concentram na história da visita a Lilipute, ignorando os outros países visitados pelo personagem. Gulliver visita o país das pessoas pequenas, mas também visita outro de gigantes, uma ilha voadora, um país de cientistas, um de necromantes, e um país governado por cavalos – entre outras descrições breves de viagens a países conhecidos (Japão, Holanda...).

A cada contato com uma cultura nova, absorvia-lhes os idiomas e descrevia seus hábitos, procurando contribuir com experiências de viagens anteriores. Transparece na narrativa a visão da Europa, e em especial do Reino Unido, como o centro da civilização ou ao menos sua referência maior. Ainda assim, ele tenta reconhecer e mostrar como somos afetados por nossos hábitos e conceitos culturais ao julgar outros povos. A cada retorno à civilização, o personagem mostra estranhamento com nossos hábitos – e como os pequenos hábitos que assimilou, como sotaques, padrões de alimentação ou vestimenta, também geram comentários e observações desconfiadas. Talvez este sentimento esteja se tornando estranho no mundo globalizado, mas dá pra imaginar como era na época das navegações e descobrimentos.

Descreve um tempo antigo, em que as viagens e conhecimentos práticos do personagem causavam distinção entre os demais. Ele era cirurgião (sempre uma ocupação importante), sabia de navegação, idiomas, e tinha interesse especial pela cultura greco-romana. Sabia construir um barco, uma casa, suas próprias roupas e comidas. Trançar uma corda, improvisar fogo, caçar, etc. A todo o tempo, tenta transparecer esses conhecimentos e o domínio da linguagem técnica correspondente, como no trecho:

“Estava o navio em alto mar, de sorte que julgamos preferível correr com o tempo a capear, ou navegar em árvore seca. Rizamos o traquete, largamo-lo e caçamos as escotas; o leme estava bem a barlavento. Houve-se a nave bravamente. Amarramos a carregadeira do traquete; mas, estando a vela rasgada, arriamos a vêrga e, depois de pô-la dentro do navio, desatamo-la de tudo o que a prendia. Rugia a borrasca, violentíssima; o mar se agitava, estranho e perigoso.”

Não foi um dos meus preferidos, mas claro que vale a leitura.

quinta-feira, 11 de abril de 2013

As dores do escritor


Resenha: Retrato do Artista quando Jovem


Sabe aqueles livros em que o autor consegue representar tão fidedignamente um personagem, que te transporta para dentro da cabeça dele? Joyce faz isto. Te transporta para a cabeça de um menino. 

Valorizo isto, pois sei o quanto é difícil. Não se trata apenas de contar uma história que envolva uma criança, mas reproduzir sua visão particular de mundo. Tem cuidados extremos, como uma percepção confusa das discussões adultas, uma vaga percepção de futuro, uma hipervalorização das regras impostas na escola, e a relação com figuras de autoridade. É tão fidedigno que sugere ser lembrança do autor, numa corajosa exposição. Está ali o inicio de sua personalidade – em vários pontos comuns à de cada um de nós.

Mostra nosso estranhamento com as regras do mundo, à medida em que o fazemos crescer em nossa criança. Um processo de “des-ilusão” – ainda assim amargo – que dá ainda mais peso para o conjunto de mudanças no corpo e nas relações com o mundo. Toda a criança passa por isto: esta construção da ilusão de uma identidade exclusiva (e ainda por cima nos achamos sempre mais espertos que os outros).

Com este artifício delicioso, coloca no cenário o que era ser uma criança na Irlanda daquele tempo. Um mundo mais adulto, menos concessivo do que o atual mundo infantil. Um mundo de um catolicismo mais amedrontador/punitivo do que aqui no Brasil, em que os instintos de um jovem em crescimento se debatem com a culpa incutida por padres e professores.

Da criança para o adolescente, e agora o ambiente é mais complicado. As angústias em relação ao futuro,  a cobrança em momentos de decisão que definirão muito do que será sua vida, a influência dos amigos e dos mestres. Tudo isto sem apelar para uma super-visão. Tudo dentro do horizonte de percepção do próprio Stephen Dedalus (personagem principal).

Por fim, vale o comentário de que os adolescentes retratados possuem uma cultura geral muito maior do que a nossa. Seria a solidez da educação? Sobram frases em latim e discussões complexas sobre religião e estética – bem interessante, por sinal.

Frases selecionadas:

“Da má semente da ambição todos os outros pecados mortais tinham saltado: orgulho de si próprio e desprezo pelos outros; avareza em guardar dinheiro para a compra de prazeres ilícitos; inveja daqueles cujos vícios não podia atingir; caluniosas murmurações contra os piedosos; voracidade em sentir os alimentos; a estúpida raiva em que ardia e nomeio da qual examinava o seu tédio; o pântano de espiritual e corporal indolência dentro do qual todo o seu ser estava atolado.”

“A narrativa tampouco é meramente pessoal. A personalidade do artista passa para a narração mesma, enchendo, enchendo de fora para dentro as pessoas e a ação como um mar vital. (...) A personalidade do artista, no começo um grito, ou uma cadência, ou uma maneira, e depois um fluido e uma radiante narrativa, acaba finalmente se clarificando fora da existência, despersonalizando-se, por assim dizer”

“O seu espirito, esvaziado de teoria e de coragem, ia tombando numa paz desinteressada”

“A sentença mais profunda até hoje escrita – disse Temple, com entusiasmo – é esta sentença, no fim da zoologia: A reprodução é o começo da morte.”

“Não servirei àquilo em que não acredito mais, chame-se isso o meu lar, a minha pátria, ou a minha igreja; e vou tentar exprimir-me  por algum modo de vida ou de arte tão livremente quanto possa, e de modo tão completo quanto possa, empregando para minha defesa apenas as armas que eu me permito usar: silêncio, exílio e sutileza.”

“Sê bem-vinda, ó vida! Eu vou ao encontro, pela milionésima vez, da realidade da experiência, a fim de moldar, na forja da minha alma, a consciência ainda não criada da minha raça”


domingo, 24 de março de 2013

Meia-noite em Paris


“Um gênio é um gênio, mesmo quando nada faz”
Gertrude Stein

Filme realmente empolgante. A dica para assisti-lo veio de minha família, que conta com a experiência de realmente conhecer Paris, suas paisagens – e sentimentos que despertam.  Abaixo, as reflexões que tive enquanto o assistia.

Foi surpreendente como roteiro, mas mais ainda pelo fato de eu ter acabado de ler “o sol também se levanta” de Hemingway – livro em que o autor fala dos relacionamentos à época. Paris foi o centro do universo artístico no pós primeira guerra – e viu o surgimento de muito do melhor da cultura disponível atualmente. É justificada a aspiração do protagonista do filme, de participar das reuniões e vida social de tantos artistas fantásticos juntos ao mesmo tempo. A mistura entre americanos, franceses e ingleses, a descoberta da estética das touradas e sua intensidade – iniciativa de Gertrude Stein para com o grupo de artistas que frequentava sua casa - representada no filme pelo amigo toureiro de Hemingway (Belmonte Garcia), o vazio existencial de uma geração que preenchia seu tempo desfrutando as possibilidades do pós primeira guerra.

Para quem gosta da cidade-luz, fica garantido uma profusão de cenas lindas de seu cotidiano, mostrando não se tratar de uma cidade museu, mas de uma obra de arte a céu aberto, viva, em constante reconstrução – inspiradora. Destaque para a cena do início, que retrata a famosa “ponte japonesa” de Monet: http://www.walldesk.com.br/pdp/1024/04/04/Impressionismo/The-Japanese-Bridge,-Claude-Monet.jpg  - tão bonita hoje quanto no dia em que foi retratada. O deslumbramento por Paris é uma alegria gerada pelo despertar que temos ao perceber a vida em constante mutação – aperfeiçoando-se a cada ciclo -  “moveable feast”, como definido por Hemingway ao citar esta cidade especial.

De alguma forma, Paris é arte – e sensibiliza tanto quanto esta: nos faz olhar para nuances até então invisíveis. Isto aparece no filme, no diálogo de “Gertrude Stein” para o protagonista:

“ - Todos temem a morte e questionam seu lugar no universo. O trabalho do artista é não sucumbir ao desespero, mas encontrar um antidoto para o vazio da existência”

Apresentando os anos 20 em oposição a nossa época atual, Allen mostra por seus personagens que o trabalho das artes nunca foi tão fundamental. Em todo o tempo, o artista luta contra a banalização da existência humana – mas no mundo atual – vazio de significados e que vive em torno de produção/marketing/consumo, esta tarefa é ainda mais nobre e complicada.
Woody Allen revisita neste filme um tema presente em outros roteiros seus, mas faz isto com criatividade e cuidado. Ao mesmo tempo em que o artista (ele incluso) busca um olhar diferenciado do mundo, não pode se considerar diferente de seu público. Se o fizer, viverá em outro mundo, e suas descobertas ficariam distantes dos demais – não fariam mais sentido. O artista precisa de interlocutores, ou então sente-se sozinho e angustiado. A maioria das vezes, transita entre uma condição e outra – mas se considerar-se um passo à frente dos demais – passa a ser pedante. Um artista que se torna um crítico, que busca diferenciação dos demais por opiniões atípicas com doses medidas de polêmica -  é tão adormecido quanto àqueles que tentou despertar no início de sua jornada.

Sempre que pode, Woody Allen coloca em seus filmes as sutis – mas fundamentais – distâncias entre casais, que mostram a hipocrisia de alguns relacionamentos. Para muitos, em especial o público feminino, ter um relacionamento é um endosso a sua visão de mundo. Os enlaces tornam-se troféus representando sucesso social. Freudiano incontestável, mostra a todo instante a libido se movimentando – construindo e reconstruindo a teia de relacionamentos conforme ocorrem sintonias entre os diferentes personagens. O cineasta é muito bom nisso.

Allen dá um jeito de nos colocar identificados com um de seus personagens,  que conforme vai evoluindo com as experiências artísticas vai desprendendo-se de sua vida e relacionamentos passados, para lançar-se a algo novo e mais honesto.  Para o protagonista do filme, seu “insight” foi descobrir que a arte é fundamental em qualquer época, e que a ânsia que o artista sente por compartilhar suas ideias é sempre suprida pela fantasia de poder compartilhar com seus antecessores de outras épocas. Em ultima analise, esta “liga” de releituras e revisitas às artes passadas faz com que não se tenha que reinventar a roda. O Ser humano não é diferente por viver num mundo diferente. Nossas necessidades emocionais são parecidas com as dos autores dos anos 20, ou da Belle époque, ou do renascimento. Isto fica claro na atualidade do diálogo da personagem dos anos 20:

“(Gil) – Mas senti, por um minuto enquanto beijava você, que eu era imortal.
 (Adriana)- Mas você parece tão triste!
 (Gil)- Porque a vida é muito misteriosa.
(Adriana) - É a época em que vivemos. Tudo acontece tão rápido e a vida é tão ruidosa e complicada”

O esforço do artista é antes de tudo seu trabalho. Seu trabalho é, por sua vez, seu colocar-se no mundo – e só nos dedicamos a este desafio porque precisamos de relacionamentos com outros seres humanos. A tarefa do artista neste ponto é como a de qualquer um: uma busca por identificação. Ao retomar a validade de suas ações, é inevitável que o protagonista se desprenda de relacionamentos superficiais, e que se sinta mais autoconfiante. Sua autoestima é renovada ao perceber a importância de seu trabalho como artista da época a que pertence – e o resultado generosamente oferecido pelo roteirista é finalizar o filme com um despertar de novas possibilidades.

quarta-feira, 13 de março de 2013

Romance Sensorial e Etílico de Hemingway


Mais um clássico para a lista - Ernest Hemingway, nobel de literatura, premio Pulitzer. Li uma versão ou o original de “O Velho e o Mar” na adolescência, mas não tenho quase lembrança – então peguei na prateleira este autor sem saber o que esperar.

A leitura de “O sol também se levanta” é um convite a continuar lendo mais obras do autor. Para quem espera uma novela cheia de acontecimentos, pode se frustrar. Ele não explora uma sequencia de fatos – mas trabalha com muita qualidade os personagens e suas experiências. Você acaba se vendo na pele dos mesmos, experimentando cada bebida, o calor de uma cidade, a tensão entre os amigos, a zonzeira da embriaguez, a delicia de um mergulho no mar.

É quase um “road novel” pois há vários deslocamentos do grupo de amigos, triângulos amorosos, bebidas. Mostra a vida de ricos europeus, sem preocupação alguma a não ser frequentar pontos turísticos, aproveitar a vida.

Interessante como essa vida de “sonho” para muitos gera tanto vazio no grupo. Em todo o livro, paira uma sensação de enfado com a vida, com certa inveja e perplexidade dos personagens principais por todos os que tocam seus caminhos  mas possuem propósitos ou necessidades que determinam suas ações. Me pareceram mimados, que podem comprar tudo, menos a satisfação de uma realização autentica o bastante para que eles próprios pudessem em seus critérios admirar.

P.S: Percebi a tradução um tanto antiga, ou inadequada, mas nada que prejudicasse o entendimento. No exemplo: “ – Essa conversa está muito cacête – disse Brett. – Por que não tomamos um pouco de champanha?”

Frases selecionadas:

“  - Bem, eu quero ir à América do Sul.
 - Escute, Robert, tanto faz um país como outro. Tenho experiência disso. Não podemos sair de dentro de nós mesmos. Não adianta.”

“E o feito que Paris inteira produzia em Robert Cohn. De onde teria Robert tirado essa incapacidade de gostar de Paris? De Mencken, possivelmente. Parece que Mencken detesta Paris e muitos jovens tiram de Mencken suas preferências e idiossincrasias.”

“Desejaria que Mike não tivesse tratado Cohn de maneira tão cruel. Mike, quando bebia, era mau; Brett sabia beber e Bill também. Cohn jamais se embriagava. Passado um certo limite, Mike tornava-se desagradável. Eu gostava de vê-lo magoar Cohn e, contudo, desejaria que não o fizesse, porque, em seguida, sentia repulsa de mim mesmo. E nisto consiste a moral: coisas que fazemos e das quais depois sentimos repulsa. Não, isso devia ser imoralidade, ponto de vista muito amplo. Quanta tolice me passa pela cabeça, à noite.”

“Saí, e fui para o meu quarto. Estendi-me na cama. A cama jogava como um navio. Sentei-me e olhei fixamente a parede, a fim de detê-la. Fora, na praça, a festa continuava. Isso me era indiferente. Mais tarde, Bill e Mike vieram buscar-me para almoçarmos juntos. Fingi que estava dormindo.”

“Entrei na água: estava fria. Quando chegou uma onda, mergulhei, nadei e voltei à superfície, sem sentir mais frio. Nadei até uma jangada, subi para ela e fiquei deitado nas tábuas quentes. Um rapaz e uma moça estavam na outra extremidade. A moça desprendera as alças de seu maiô, nas costas, e bronzeava-se ao sol. O rapaz, deitado de bruços, na jangada, falava-lhe. Ela ria ouvindo-o e apresentava ao sol as costas bronzeadas. Demorei na jangada, ao sol, até secar. Depois mergulhei várias vezes, experimentando diversas maneiras. Mergulhei profundamente, uma vez, nadei de olhos abertos, e tudo era sombrio e verde. A jangada formava uma mancha escura. Saí da água, junto dela, subi, mergulhei mais uma vez, demoradamente, e depois alcancei a praia a nado. Fiquei deitado na areia até secar, depois fui à cabina, tirei o maiô, banhei-me com água doce e me enxuguei.”

O Retrato de Oscar Wilde


Em minhas metas de leitura deste ano, preciso acrescentar alguns clássicos a meu currículo. Foi assim que peguei “O retrato de Dorian Gray” da prateleira – obra de Oscar Wilde.

Autor conhecido pelo homossexualismo numa época em que isso era um enorme tabu (acho as vezes que isto não foi superado) e pela vida de “dândi” que levou em Londres, Wilde deixa muito de sua própria vivência e entendimento do ser humano neste livro. A maioria de suas obras não foram romances, mas poesias e peças para teatro, pelo que soube. Ainda assim, faz jus ao título de “clássico da literatura”, pois é denso e bem escrito.

O primeiro contato com o livro deixa uma sensação de ritmo lento.  E então, com um fato surpreendente (que não cito aqui para não me tornar “spoiler”), o autor faz o ritmo lento tornar-se mais frenético, e o livro segue interessante até o final. No decorrer da história, podemos observar “na janela do trem” a vida na nata de uma sociedade rica, sem preocupações por sobrevivência, já anestesiada de suas culpas.

Um homoerotismo subjacente aparece nas relações de admiração e controle entre os personagens masculinos iniciais. A misoginia aparece no retrato das mulheres durante o livro – mas aparecem como crítica, não determinismo ou preconceito. São construídos cenários da sociedade fútil da época, mas que por ter ainda contar com educação forte na infância, sobra em criatividade para justificar sua inutilidade. Num estilo de vida em que tudo está garantido, os prazeres simples perdem em interesse, e é preciso drogas cada vez mais pesadas. É assim que as personagens trocam frases sarcásticas, polêmicas e desesperançosas.

O sarcasmo é uma cortina de fumaça para esconder problemas de autoestima. Nas frases inteligentes e na influência sutil de um personagem sobre o outro, aparece a genialidade do autor, mas também sua prisão e fragilidade. De forma semelhante, o caçador tem a vida da caça na ponta de seus dedos no gatilho, mas é escravo da caça por precisar da adrenalina desse momento para justificar sua existência.

Vale muito a leitura.

Frases selecionadas:

“  - Meu amigo, não falo completamente a sério. Mas não posso deixar de detestar meus parentes. Suponho que isto se deve a que nenhum de nós pode suportar a vista de outros que tenham os seus mesmos defeitos. Estou completamente de acordo com a democracia inglesa, na sua cólera contra o que ela denomina os vícios das classes superiores. O povo acha que a embriaguez, a ignorância e a imoralidade devem ser propriedade sua e, se algum de nós incorre nesses defeitos é como se invadisse os seus domínios. Quando o pobre Southwark compareceu diante do Tribunal de Divórcios, a indignação desse povo foi magnífica. E, contudo, não acredito que a décima parte do proletariado viva corretamente.”

“Costuma-se dizer que a Beleza é a maravilha das maravilhas. Só o medíocre não julga pelas aparências. O verdadeiro mistério do mundo é o visível, não o invisível... Sim, Sr. Gray, os deuses foram generosos para com o senhor. Mas o que os deuses dão, tomam logo em seguida. O senhor não tem senão uns poucos anos para viver verdadeiramente, perfeitamente, plenamente. Quando a sua juventude se desvanecer, a sua beleza ir-se-á com ela, e, então, descobrirá que nada ficou dos seus triunfos, ou terá de se conformar com esses êxitos insignificantes, que a lembrança do passado torna ainda mais amargos que derrotas.”

“ – Hum! Dize à tua tia Ágata, Harry, que não me incomode mais com as suas obras de caridade. Estou farto delas. Ora! A boa criatura pensa que não tenho mais nada a fazer, senão assinar cheques para as suas tolas manias.
 - Muito bem, tio George, dir-lho-ei, mas não surtirá nenhum efeito. Os filantropos perderam toda a noção de humanidade. É a sua mais notável característica.”

“Meu caro amigo, nenhuma mulher é gênio. As mulheres são um sexo decorativo. Não têm nunca nada a dizer, mas dizem-no de um modo encantador. As mulheres representam o triunfo da matéria sobre a inteligência, exatamente como os homens representam o triunfo da inteligência sobre os costumes.”

“Verdade é que todo aquele que observava a vida, em seu estanho crisol de dor e prazer, não podia usar máscara de vidro no rosto, nem impedir que os vapores sulfurosos lhe perturbassem o cérebro e turvassem a imaginação com monstruosas fantasias e sonhos informes. Havia venenos tão sutis que, para conhecer-lhes as propriedades, fazia-se mister experimentar seus efeitos em si mesmo. E enfermidades tão estranhas que era preciso tê-las sofrido, para compreender-lhes a natureza.”

“A sociedade, a sociedade civilizada pelo menos, nunca se acha disposta a acreditar em alguma coisa desabonadora em relação àqueles que são simultaneamente ricos e sedutores. Considera instintivamente as maneiras mais importantes do que a moral e, em sua opinião, a mais alta respeitabilidade vale muito menos do que o fato de se possuir um bom cozinheiro.”