Escrever é Espiritual.
Este foi meu primeiro contato com o autor de “Zorba – O Grego”
e de “O Cristo Recrucificado”. O que me atraiu para o livro foi sua relevância
para a literatura mundial, mas desconfiava que a polêmica religiosa pudesse ter
sido a única razão de seu sucesso mundial. Como sabemos, basta falar de
religião para detonar uma incrível polêmica. Dependendo do tema, o povo sai se
matando – o que classifico como trágico, mas também ridículo.
Como não sou religioso, não passou por mim nenhum pudor
maior ao conhecer esta releitura da vida de Jesus. Ainda assim, talvez haja um
prazer maior na leitura, se você já teve algum contato com algum dos
evangelhos, pois vai reconhecer momentos importantes, como o “sermão da
montanha”, alguns milagres, a luta de Jesus no templo, entre outras. O livro
não faz propaganda religiosa, mas consegue ser espiritual ao contemplar a vida,
ao humanizar a personalidade de Jesus. Faz sem medo o saudável exercício de
questionamento das histórias do evangelho, e também as diferentes opiniões que
se pode ter sobre o que se convenciona Bem e Mal:
“Alguém veio aqui
enquanto eu dormia – disse o rapaz baixinho, como se temesse que o visitante
ainda estivesse por ali e pudesse ouvi-lo – Veio alguém... Sem dúvida foi Deus,
Deus..., ou teria sido o diabo. Quem consegue distinguir entre os dois? Eles
trocam de cara. Deus ás vezes é só escuridão; e o diabo, só luz. Por isso, o
espirito do homem fica desorientado.”
Mais do que isso – e é
preciso destacar nesta resenha – O LIVRO É MUITO BEM ESCRITO. Suas 500 páginas
passam rápido. Alguns trechos são realmente lapidados – primorosos - e tudo tem
um ritmo bom, não há partes áridas. Kazantzakis mostra o constante debater de
Jesus com seu destino, revelado a ele por Deus (ou seus representantes – anjos e
outras figuras, que se alternam ao longo da trama). Será que ele, ou Judas
Iscariotes, tiveram livre-arbítrio? Será preciso procurar Deus fora? Será
imprescindível uma vida de abnegação e pobreza? Ele passa ao largo da questão
política da época (romanos x Judeus x outros povos), mas usa esse cenário com
sabedoria – e é tocante nos momentos em que contempla a vida comum e sua beleza
intrínseca. Suas descrições do deserto fazem sentir sede. Ao ler sobre a
comida, sentimos fome. Sobre as mulheres, sentimos desejo.
Frases Selecionadas:
“Ali fora ainda estava claro: a luz do verão afastava-se
lentamente da terra como se não quisesse ir embora. Homens e bois voltavam de
seu trabalho nos campos. Donas de casa acendiam o fogo para preparar a refeição
vespertina; a fragrância de lenha a queimar invadia o ar da tarde. Maria fiava,
e seu pensamento volteava para um lado e para o outro, acompanhando o movimento
do fuso.”
“O filho de Maria estava tranquilo. Sentou-se na raiz da antiquíssima
oliveira e pôs-se a comer. Esse pão era tão bom! E a água tão refrescante! E
como eram deliciosas as duas azeitonas que a velha lhe deu para acompanhar o
pão! Os caroços eram finos, e elas eram gordas e polpudas como maças. Ele mastigava,
sereno, e comia sentindo que seu corpo e sua alma eram agora um só, que os dois
estavam recebendo o pão, as azeitonas e a água através de uma só boca, e que os
dois com isso se alegravam e se nutriam.”
“ – Ora, pobre coitado, você não sabe que não se encontra
Deus os mosteiros, mas sim nas casas dos homens? Onde quer que se vejam marido
e mulher, ali está Deus. Onde quer que haja crianças, pequenas preocupações,
cozinha, brigas e reconciliações, é ali também que Deus está. Não dê ouvidos a
esses eunucos. As uvas estão verdes! Estão verdes! O Deus de que lhe falo, o
Deus doméstico, não o monástico, é esse o verdadeiro Deus. É a ele que você
deve adorar. Deixe o outro para aqueles idiotas preguiçosos e estéreis no
deserto!”
“Madalena estava deitada de costas, inteiramente nua,
encharcada de suor, seu cabelo negro como a noite espalhado no travesseiro e os
braços cruzados atrás da cabeça. Seu rosto estava virado para a parede, e ela bocejava. O embate com homens
nessa cama desde o amanhecer a deixara exausta. Seu cabelo, suas unhas, cada
centímetro de se corpo recendiam aos cheiros de todas as nações, e seus braços,
seu pescoço e seus seios estavam cobertos de mordidas.”
“ – Ele é um de nossos filhos. É por isso que as Escrituras
chamam-no de Filho do Homem! Por que vocês pensam que milhares de israelitas,
homens e mulheres, copularam geração após geração? Para esfregarem seus quadris
e excitarem as virilhas? Não! Todos esses milhares e milhares de beijos eram
necessários para que se produzisse o Messias.”
“ – Não, não quero me calar! – prosseguiu o rapaz, com os
nervos em frangalhos – Agora que já comecei, é tarde demais. Não vou calar a
boca. Sou um mentiroso, hipócrita. Tenho medo da minha própria sombra. Nunca
digo a verdade, não tenho coragem. Quando vejo uma mulher passar, enrubesço e
abaixo a cabeça, mas meus olhos enchem-se de desejo. Nunca ergui minha mão para
roubar, açoitar ou matar. Não por não ter vontade, mas por ter medo. Deus, mas
tenho medo. Medo! Medo! Se você olhar dentro de mim, verá o Medo, um coelhinho
trêmulo, alojado em minhas entranhas. Só o medo e nada mais. Ele é meu pai,
minha mãe e meu Deus.”
“Como podem, então, Onipotente, olhar diretamente para o
Senhor? Tenha piedade, Senhor; modere sua força, diminua seu esplendor, para
que eu, pobre e aflito, possa vê-lo! Então escute, meu velho, Deus
transformou-se num pedaço de pão, numa caneca de água fresca, numa túnica
aconchegante, numa cabana e, na frente da cabana, numa mulher amamentando uma
criança.”
“Gemendo, Maria Madalena abraçou o homem de forma a manter
seu corpo grudado ao dele.
– Nenhum homem jamais
me beijou. Nunca senti uma barba nos meus lábios e no meu rosto; nem os joelhos
de um homem entre os meus. Hoje estou nascendo... Você está chorando, meu filho?
- Amada esposa, eu
nunca soube que o mundo era tão lindo nem que a carne era tão sagrada. Ela
também é filha de Deus, a graciosa irmã do espirito...Eu nunca imaginei que os
prazeres do corpo não fossem pecaminosos.
- Por que você se
decidiu a conquistar os céus, a suspirar à procura da milagrosa água da vida
eterna? Sou eu essa água. Você debruçou-se, bebeu e encontrou a paz...”
“Passaram-se os dias, os meses, os anos. Na casa de mestre
Lázaro, multiplicavam-se os filhos e filhas, e Marta e Maria competiam para ver
quem daria à luz mais crianças. O marido lutava. Ás vezes na carpintaria, com o
pinho, o carvalho e o cipreste, derrubando a madeira e forçando-a a assumir a
forma de utensílios para os homens. Às vezes no campo, com ventos, toupeiras e
urtigas. À noite ele voltava exausto para se sentar no quintal, e suas mulheres
vinham lavar-lhe os pés e as pernas, acendiam a lareira, serviam a mesa e
abriam os braços para ele. E da mesma forma que ele trabalhava a madeira,
liberando os berços que estavam presos a ela, e trabalhava a terra, liberando
as uvas e as espigas do grão que estavam dentro dela; da mesma forma ele
trabalhava as mulheres e de seu ventre liberava Deus.”