segunda-feira, 29 de junho de 2015

Quincas Borba

“Ao vencedor, as Batatas!” 

Para entender a frase acima, célebre característica desta obra de Machado de Assis, é preciso ler o livro. Não vou dar colher de chá neste aspecto. Esta releitura foi parte do plano para deixar resenhadas as leituras mais importantes, e não esquecê-las mais.


Ao sempre delicioso estilo de Machado de Assis, que faz imagens divertidas para traduzir os sentimentos e ideias de seus personagens, o livro relata a história de Rubião, professor simples em Barbacena, que cuida do amigo Quincas Borba (mesmo personagem de “Memórias Póstumas de Brás Cubas”) em seus dias finais, e herda toda sua fortuna. Ao mudar-se para o Rio de Janeiro, sua simplicidade o leva a ser explorado pelos novos “amigos”, levando-lhe pouco a pouco as esperanças de um futuro tranquilo e por fim sua sanidade mental. 

Durante todo o livro, o modo de ser simples de Rubião, e o cuidado temeroso que tem com o simpático cão (que também se chama Quincas Borba e cuja guarda era uma das condições do testamento do Homônimo) nos faz simpatizar com ele – desejar sua felicidade, mesmo se reprovarmos seus adultérios e pequenas ambições manifestas.


No entanto, é com a loucura do personagem principal que Machado de Assis, ainda irônico e fazendo comédias, joga por terra esta esperança. Não me entendam mal, o livro é muito bom, mas deixa na gente aquela sensação do final que não desejávamos. 

Ao final, pode-se dizer (sem estragar a leitura de ninguém) que me senti sem vencedor, nem batatas. E para me consolar, apenas a verdade contundente na pena de Machado de Assis:
“Eia! Chora os dois recentes mortos, se tens lágrimas. Se só tens riso, ri-te! É a mesma coisa. O Cruzeiro, que a linda Sofia não quis fitar, como lhe pedia Rubião, está assaz alto para não discernir os risos e as lágrimas dos homens.”

terça-feira, 23 de junho de 2015

O Retrato de Dorian Gray

Em minhas metas de leitura de 2012, precisava acrescentar alguns clássicos a meu currículo. Foi assim que peguei “O Retrato de Dorian Gray” da prateleira – obra de Oscar Wilde, e agora aproveito para compartilhar minhas impressões.

Autor conhecido pelo homossexualismo numa época em que isso era um enorme tabu (era um tabu?) e pela vida de “dândi” que levou em Londres, Wilde deixa muito de sua própria vivência e entendimento do ser humano neste livro.

Narciso - Caravaggio
A maioria de suas obras não foram romances, mas poesias e peças para teatro, pelo que soube. Ainda assim, faz jus ao título de “clássico da literatura”, pois é denso e bem escrito. O primeiro contato com o livro deixa uma sensação de ritmo lento.  E então, com um fato surpreendente (que não cito aqui para não me tornar “spoiler”), o autor faz o ritmo lento tornar-se mais frenético, e o livro segue interessante até o final. Descompromissados como quem olha a paisagem urbana pela janela de um trem, podemos observar no decorrer da história a vida na nata de uma sociedade rica, sem preocupações por sobrevivência, já anestesiada de suas culpas.
“Costuma-se dizer que a Beleza é a maravilha das maravilhas. Só o medíocre não julga pelas aparências. O verdadeiro mistério do mundo é o visível, não o invisível... Sim, Sr. Gray, os deuses foram generosos para com o senhor. Mas o que os deuses dão, tomam logo em seguida. O senhor não tem senão uns poucos anos para viver verdadeiramente, perfeitamente, plenamente. Quando a sua juventude se desvanecer, a sua beleza ir-se-á com ela, e, então, descobrirá que nada ficou dos seus triunfos, ou terá de se conformar com esses êxitos insignificantes, que a lembrança do passado torna ainda mais amargos que derrotas.”
O homoerotismo subjacente aparece nas relações de admiração e controle entre os personagens masculinos iniciais. A misoginia aparece no retrato das mulheres durante o livro – mas aparecem como crítica, não determinismo ou preconceito. São construídos cenários retratando a sociedade fútil da época, mas que, tendo ainda em seus membros a educação sólida de infância, sobra em criatividade para justificar sua inutilidade. Num estilo de vida em que tudo está garantido, os prazeres simples perdem em interesse, e é preciso drogas cada vez mais pesadas. É assim que as personagens trocam frases sarcásticas, polêmicas e desesperançosas.
“Meu caro amigo, nenhuma mulher é gênio. As mulheres são um sexo decorativo. Não têm nunca nada a dizer, mas dizem-no de um modo encantador. As mulheres representam o triunfo da matéria sobre a inteligência, exatamente como os homens representam o triunfo da inteligência sobre os costumes.”
O sarcasmo é uma cortina de fumaça para esconder problemas de autoestima. Nas frases inteligentes e na influência sutil de um personagem sobre o outro, aparece a genialidade do autor, mas também sua prisão e fragilidade. De forma semelhante, o caçador tem a vida da caça na ponta de seus dedos, mas é escravo de mantê-los no gatilho, por precisar dela o suprimento de adrenalina para justificar sua existência.

"Verdade é que todo aquele que observava a vida, em seu estanho crisol de dor e prazer, não podia usar máscara de vidro no rosto, nem impedir que os vapores sulfurosos lhe perturbassem o cérebro e turvassem a imaginação com monstruosas fantasias e sonhos informes. Havia venenos tão sutis que, para conhecer-lhes as propriedades, fazia-se mister experimentar seus efeitos em si mesmo. E enfermidades tão estranhas que era preciso tê-las sofrido, para compreender-lhes a natureza.”

domingo, 21 de junho de 2015

Todos os Elogios a Aluísio Azevedo

Lido na época dos "livros obrigatórios" do ensino médio, O CORTIÇO – de Aluísio Azevedo - não tinha me chamado a atenção. Ok, sejamos justos com a obra. Talvez eu tenha lido só algum resumo para passar na prova, pois hoje penso ser impossível passar por ele sem gostar. Desta vez foi uma leitura completamente nova, que diferença! Foi um verdadeiro prazer passar pelas páginas de "o cortiço", que passa para mim a ocupar honrosamente a posição de obra favorita da literatura nacional.


A Sensualidade das Lavadeiras de Carybé
Por toda a obra, é muito forte a capacidade de descrição do ambiente, onde os personagens se inserem de maneira natural. E o ritmo que consegue manter? Praticamente você não é capaz de se desgrudar do livro. Sempre acontece alguma coisa ou se introduz alguma figura interessante. São essas características, a meu ver, que fazem que O CORTIÇO seja tão indicado.

"Eram cinco horas da manhã e o cortiço acordava, abrindo, não os olhos, mas a sua infinidade de portas e janelas alinhadas.

Um acordar alegre e farto de quem dormiu de uma assentada, sete horas de chumbo. Como que se sentiam ainda na indolência de neblina as derradeiras notas da última guitarra da noite antecedente, dissolvendo-se à luz loura e tenra da aurora, que nem um suspiro de saudade perdido em terra alheia.

A roupa lavada, que ficara de véspera nos coradouros, umedecia o ar e punha-lhe um farto acre de sabão ordinário. As pedras do chão, esbranquiçadas no lugar da lavagem e em alguns pontos azuladas pelo anil, mostravam uma palidez grisalha e triste, feita de acumulações de espumas secas.

Entretanto, das portas surgiam cabeças congestionadas de sono, ouviam-se amplos bocejos, fortes como o marulhar das ondas; pigarreava-se grosso por toda a parte; começavam as xícaras a tilintar; o cheiro quente do café aquecia, suplantando todos os outros; trocavam-se de janela para janela as primeiras palavras, os bons dias; reatavam-se conversas interrompidas à noite..."

Não é visceral? Você obviamente não quer a vida de exploração e privação desses personagens, mas sente como eles a intensidade de sua experiência e simplicidade. O gosto do café, o cheiro da roupa limpa, a delícia de ver a vida como criança, sem muito futuro, sem muita complexidade.

Para mim, uma das mais realistas e belas descrições da condição masculina:
"Jerônimo não precisou de mais nada para beber de um trago os dois dedos de restilo que havia no copo.

Sóbrio como era, e depois daquele dispêndio de suor, o álcool produziu-lhe logo de pronto o feito voluptuoso e agradável da embriaguez nos que não são bêbedos: um delicioso desfalecer de todo o corpo; alguma coisa do longo espreguiçamento que antecede à satisfação dos sexos, quando a mulher, tendo feito esperar por ela algum tempo, aproxima-se afinal de nós, numa avidez gulosa de beijos."

"Pombinha, impressionada pela transformação da voz dele, levantou o rosto e viu que as lágrimas lhe desfilavam duas a duas, três a três, pela cara, indo afogar-se-lhe na moita cerdosa das barbas. E, coisa estranha, ela, que escrevera tantas cartas naquelas mesmas condições; que tantas vezes presenciara o choro rude de outros muitos trabalhadores do cortiço, sobressaltava-se agora com os desalentados soluções do ferreiro.

Porque, só depois que o sol lhe abençoou o ventre; depois que nas suas entranhas ela sentiu o primeiro grito de sangue de mulher, teve olhos para essas violentas misérias dolorosas, a que os poetas davam o bonito nome de amor. A sua intelectualidade, tal como seu corpo, desabrochara inesperadamente, atingindo de súbito, em seu pleno desenvolvimento, uma lucidez que a deliciava e surpreendia. Não a comovera tanto a revolução física. Como que naquele instante o mundo inteiro se despia à sua vista, de improviso esclarecida, patenteando-lhe todos os segredos das suas paixões. Agora, encarando as lágrimas do Bruno, ela compreendeu e avaliou a fraqueza dos homens, a fragilidade desses animais fortes, de músculos valentes, de patas esmagadoras, mas que se deixavam encabrestar e conduzir humildes pela soberana e delicada mão da fêmea.

(...)

Que estranho poder era esse, que a mulher exercia sobre eles, a tal ponto , que os infelizes, carregados de desonra e de ludibrio, ainda vinham covardes e suplicantes mendigar-lhe o perdão pelo mal que ela lhes fizera?...
E surgiu-lhe então uma idéia bem clara da sua própria força e do seu próprio valor.
Sorriu.
E no seu sorriso já havia garras."
(...)
E continuou a sorrir, desvanecida na sua superioridade sobre esse outro sexo, vaidoso e fanfarrão, que se julgava senhor e que no entanto fora posto no mundo simplesmente para servir ao feminino; escravo ridículo que, para gozar um pouco, precisava tirar dela sua mesma ilusão a substância do seu gozo; ao passo que a mulher, a senhora, a dona dele, ia tranquilamente desfrutando o seu império, endeusada e querida, prodigalizando martírios que os miseráveis aceitavam contritos, a beijar os pés que os deprimiam e as implacáveis mãos que os estrangulavam.”
Uma única reserva – não com o conteúdo, mas com a edição antiga da Editora Ática, que é de baixa qualidade. Acho que o foco dessas obras indicadas para vestibular é que sejam baratas - então desmontou todinha na minha mão. Tem ainda um espaço entre linhas bastante pequeno e desconfortável.



Leitura fundamental! Devo ser louco de não ter lido mais nada deste autor, e pretendo remediar isto em breve! Qual deve ser o próximo?

sábado, 20 de junho de 2015

O Crime do Padre Amaro

Discutir a influência política que as religiões são capazes de exercer. Esta é a principal ideia de “O Crime do Padre Amaro”, de Eça de Queiroz. O autor deixa de lado os finais felizes românticos e engaja-se politicamente, num texto (que hoje seria explicito, quase ingênuo) de crítica ao fator político imposto pela igreja e seus representantes, ao mesmo tempo em que com maestria conduz uma história humana, de desejos e luta com convenções e proibições sociais.

Mexer com Símbolos Religiosos dá um IBOPE danado...
Há duas facetas interessantes no texto. Na primeira, o envolvimento político da igreja, presente até hoje, quando vemos a força de congressos eleitos por rebanhos fieis, e a baixa permeabilidade da sociedade a novas formas de família, questões ligadas à sexualidade, aborto, suicídio, entre outros. Num retrato patético da conexão entre política e religião, basta ver o rosto constrangido de políticos declaradamente ateus, visitando cerimônias religiosas em épocas eleitorais.

Se o engajamento político da obra ficou para mim um tanto datado - baseado nas aspirações de gerações que já passaram pelo teste da história (embora alguns teimosos contradigam fatos e ainda se apeguem ao passado) -  o segundo aspecto fala da natureza humana, tema que está sempre ali:  nos intermináveis diálogos que travamos com nós mesmos. Mostra que nem mesmo os padres e beatas mais dedicados estão livres de sentirem o sangue nas veias, e qual inexpugnável deveria ser seu arcabouço teológico para lidar com a avalanche de pensamentos geradas por um decote generoso ou um discurso poderoso.

Achou o modelito sensual?
Mais um belo exemplar de nossa literatura reconhecido para além dos limites de nosso idioma: escrito com habilidade, com um ritmo bastante adequado, descrições só quando necessárias (e nesses momentos são viscerais, deliciosas). Uma pena que quando adolescente, não gostei do livro apenas porque sua leitura foi imposta pela escola.

Se você tem sensibilidade à crítica religiosa, não se preocupe. Nenhum dos argumentos é leviano. E o próprio autor, após pesadas críticas aos sacerdotes, coloca ao final do livro a personagem do abade, que redime a classe religiosa e contemporiza ao mostrar a importância de uma vida espiritual - mesmo que mantenha a posição de que a religião nem sempre leve a este objetivo.

Frases selecionadas:

“Na sua cela, havia uma imagem da Virgem coroada de estrelas, pousada sobre a esfera, com um olhar errante pela luz imortal, calcando aos pés a serpente. Amaro voltava-se para ela como para um refúgio, rezava-lhe a Salve-Rainha: mas, ficando a contemplar a litografia, esquecia a santidade da Virgem, via apenas diante de si uma linda moça loura; amava-a; suspirava, despindo-se olhava-a de revés lubricamente; e mesmo a sua curiosidade ousava erguer as pregas castas da túnica azul da imagem e supor formas, redondezas, uma carne branca...Julgava então ver os olhos do Tentador luzir na escuridão do quarto; aspergia a cama de água benta; mas não se atrevia a revelar estes delírios, no confessionário, ao domingo.”

“- Estou a dizer a verdade. Em que consiste a educação dum sacerdote? Primo: em o preparar para o celibato e para a virgindade; isto é, para a supressão violenta dos sentimentos mais naturais. Secundo: em evitar todo o conhecimento e toda a idéia que seja capaz de abalar a fé católica; isto é, a supressão forçada do espírito de indagação e de exame; portanto de toda a ciência real e humana...”

quinta-feira, 18 de junho de 2015

Games para Resolver Nossos Problemas

"Sai desse videogame! Você não vai ser nada na vida se ficar só jogando!". 

Já ouviu sua mãe berrar essa frase? Pode ser que sim ou não, mas é provável que já desejou no seu íntimo que ir à escola ou trabalhar fossem tão divertidos quanto desvendar as fases de seu game favorito e ganhar pontos e "badges".

Campeonatos de Videogames movimentam dinheiro suficiente para times profissionais
Como qualquer mamífero, somos programados geneticamente para aprender brincando. Grandes felinos brincam de caçar, aguçando suas capacidades. Da mesma forma, nos jardins-de-infância as crianças interagem, aprendendo linguagem e regras sociais, negociando para defender seus pontos de vista. 

É baseado nessa premissa que escolas bem sucedidas fazem cada vez mais o ensino ter relação com a prática e com a vida. Também aproveitamos nossa gana por pontos em programas de relacionamentos de empresas. 

Nos aplicativos de nosso celular, as regras nos conferem status diferenciados conforme contribuímos para uma tarefa, ou fornecemos informações do trânsito, ou visitamos lugares - fenômeno chamado crowdsourcing. Nos sites de leitura, atire a primeira pedra quem não olhou com orgulho para seu "paginômetro". As redes sociais são divididas entre os viciados em jogos online e os indivíduos de saco cheio de receber convites.


Esbarrei por acaso no livro "Gamification: Como criar experiências de Aprendizagem engajadoras / Um guia completo do conceito à prática" de Flora Alves. Estava no aeroporto para enfrentar um voo longo e me vi sem "munição" de leitura - sendo obrigado a recorrer a uma livraria. Além do interesse natural pelo tema, escolhi este livro porque trabalho no desenvolvimento humano nas empresas e dou aulas.

Ao ler o livro, pareceu um pouco como se alguém tivesse pesquisado o tema no google, analisando e pinçando os resultados mais relevantes. É uma ótima introdução a um assunto que eu imagino que fará cada vez mais parte de nossas vidas. A autora não promete esgotar o tema, mas faz uma apresentação bem didática do mesmo. 

É eficaz ao mostrar as ideias gerais de como incorporar estratégias de games nas resolução dos problemas do dia a dia. Dá pistas de como saber mais a respeito, seja compartilhando impressões sobre diferentes estudos na área, seja divulgando links para cursos e dicas diversas. Tudo entregue como num game, com uma barra de progresso a cada capítulo, e tópicos indicando o que esperar de cada etapa. Super amigável.


Somos uma geração que cresceu jogando, e muitos adultos continuam a investir em jogos, que estão cada vez mais elaborados. Muita gente que está participando de games online. Campeonatos já distribuem grana suficiente para justificar times profissionais. Em consequência, é normal que cada vez mais pessoas se sensibilizem sobre Gamification (Clique aqui para conhecer o curso gratuito da Coursera).

Parece que as mães vão perder essa batalha!




terça-feira, 9 de junho de 2015

O Mal que nos Habita - O Médico e o Monstro

Acabo de chegar ao fim de “O estranho caso do Dr. Jekyll e Sr. Hyde” – mais conhecido como o “O Médico e o Monstro”, de Robert Louis Stevenson (Selo Penguin – Companhia das Letras). Sucesso desde quando foi editado pela primeira vez em 1886, o livro é pequeno, de ritmo eletrizante, bem escrito, enfim: é de ler num fôlego.

E se para passar por seu número pequeno de páginas não é requerido esforço, tive alguma dúvida quanto a escolher inicia-lo. O que poderia ter de interessante num título tão conhecido, com tantas adaptações para teatro, cinema, televisão? Nesta resenha não corri o risco de ser “spoiler”. A história do médico bom que toma uma poção e torna-se mau é conhecida de todos! Faz quase parte do imaginário, desde o desenho do scooby-doo, até outras obras conhecidas, em que esta formula do “duplo” personagem se repete: “Silêncio dos Inocentes”,"Hulk", “Psicose”, etc.


Mas é aí que o clássico mostra a genialidade que o fez sobreviver mais de um século. Da safra de grandes escritores da literatura britânica, o autor escolhe um caminho interessante para entregar-nos a história. Não é um narrador onisciente, ou o próprio Dr. Jekyll (este escreve-nos apenas no último capítulo) quem conta “o estranho caso”. Ele é retratado sempre por personagens coadjuvantes, em incidentes aparentemente desconexos. O artifício aumenta as lacunas nas histórias, contadas por diferentes pontos de vista, o que aumenta o suspense. 

Você sabe o que está acontecendo, e ao mesmo tempo só consegue conectar os capítulos página à página. Não dá pra saber o que vem à frente, numa literatura que imita a atmosfera da Londres daquela época – enevoada e misteriosa – talvez um dos primeiros exemplos de metrópole que permite tanto uma sociedade rica e complexa, quanto anônima e entregue aos seus vícios.


O retrato do honrado Dr. Jekyll, e do malévolo Dr. Hyde vai se desenhando na tela mental, como num “download” lento. Aos poucos, vamos percebendo que não se trata de mera literatura fantástica ou gótica, de terror... não é obra para rotular. A ideia de que somos seres complexos e de que não somos “donos” das emoções que sentimos dói em nosso orgulho de autocontrole, mas nos é familiar e irrefutável. 

No íntimo, todos sentimos a tensão entre o velho primata que nos deu origem, e o indivíduo racional/religioso/moral que tentamos manter vivo e construir na sociedade moderna. É um equilíbrio tênue, e tropeços se acumulam por toda parte: dos casos extraconjugais às páginas policiais, nosso poder de destruir é tão forte quanto nossa arte e espiritualidade. 

Sentados pelos bares a tomar nossas “poções”, ou no intervalo entre a vigília e o sono, nossos sonhos e desejos afloram clamando por seu espaço. Se atendidos completamente, reivindicam avidamente por prioridade, levando com seu imediatismo animal os alicerces de nossas construções culturais mais elaboradas. Se fortemente inibidos, somatizam-se em dores e loucuras, provando que são parte inerente de nós, tanto quanto é inerente à humanidade o uso de substâncias para se perder de si mesmo. 

O "estranho caso" é uma leitura deliciosa, e nem é assim tão estranho ou infrequente. Aprecie sem moderação.

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