Resenha: Retrato do Artista quando Jovem
Sabe aqueles livros em que o autor consegue representar tão
fidedignamente um personagem, que te transporta para dentro da cabeça dele?
Joyce faz isto. Te transporta para a cabeça de um menino.
Valorizo isto, pois sei o quanto é difícil. Não se trata
apenas de contar uma história que envolva uma criança, mas reproduzir sua visão
particular de mundo. Tem cuidados extremos, como uma percepção confusa das
discussões adultas, uma vaga percepção de futuro, uma hipervalorização das
regras impostas na escola, e a relação com figuras de autoridade. É tão
fidedigno que sugere ser lembrança do autor, numa corajosa exposição. Está ali
o inicio de sua personalidade – em vários pontos comuns à de cada um de nós.
Mostra nosso estranhamento com as regras do mundo, à medida
em que o fazemos crescer em nossa criança. Um processo de “des-ilusão”
– ainda assim amargo – que dá ainda mais peso para o conjunto de mudanças no
corpo e nas relações com o mundo. Toda a criança passa por isto: esta
construção da ilusão de uma identidade exclusiva (e ainda por cima nos achamos
sempre mais espertos que os outros).
Com este artifício delicioso, coloca no cenário o que era
ser uma criança na Irlanda daquele tempo. Um mundo mais adulto, menos
concessivo do que o atual mundo infantil. Um mundo de um catolicismo mais
amedrontador/punitivo do que aqui no Brasil, em que os instintos de um jovem em
crescimento se debatem com a culpa incutida por padres e professores.
Da criança para o adolescente, e agora o ambiente é mais
complicado. As angústias em relação ao futuro,
a cobrança em momentos de decisão que definirão muito do que será sua
vida, a influência dos amigos e dos mestres. Tudo isto sem apelar para uma
super-visão. Tudo dentro do horizonte de percepção do próprio Stephen Dedalus (personagem
principal).
Por fim, vale o comentário de que os adolescentes retratados
possuem uma cultura geral muito maior do que a nossa. Seria a solidez da
educação? Sobram frases em latim e discussões complexas sobre religião e
estética – bem interessante, por sinal.
Frases selecionadas:
“Da má semente da ambição todos os outros pecados mortais
tinham saltado: orgulho de si próprio e desprezo pelos outros; avareza em
guardar dinheiro para a compra de prazeres ilícitos; inveja daqueles cujos
vícios não podia atingir; caluniosas murmurações contra os piedosos; voracidade
em sentir os alimentos; a estúpida raiva em que ardia e nomeio da qual
examinava o seu tédio; o pântano de espiritual e corporal indolência dentro do
qual todo o seu ser estava atolado.”
“A narrativa tampouco é meramente pessoal. A personalidade
do artista passa para a narração mesma, enchendo, enchendo de fora para dentro
as pessoas e a ação como um mar vital. (...) A personalidade do artista, no
começo um grito, ou uma cadência, ou uma maneira, e depois um fluido e uma
radiante narrativa, acaba finalmente se clarificando fora da existência,
despersonalizando-se, por assim dizer”
“O seu espirito, esvaziado de teoria e de coragem, ia
tombando numa paz desinteressada”
“A sentença mais profunda até hoje escrita – disse Temple,
com entusiasmo – é esta sentença, no fim da zoologia: A reprodução é o começo
da morte.”
“Não servirei àquilo em que não acredito mais, chame-se isso
o meu lar, a minha pátria, ou a minha igreja; e vou tentar exprimir-me por algum modo de vida ou de arte tão
livremente quanto possa, e de modo tão completo quanto possa, empregando para
minha defesa apenas as armas que eu me permito usar: silêncio, exílio e
sutileza.”
“Sê bem-vinda, ó vida! Eu vou ao encontro, pela milionésima
vez, da realidade da experiência, a fim de moldar, na forja da minha alma, a
consciência ainda não criada da minha raça”
Ansiosa para ler Joyce! Como comentei estou com um exemplar de "Dublinenses" aqui... Talvez eu consiga lê-lo nas férias...rs.
ResponderExcluirÓtima resenha, vou postar lá no blog!