O crime do padre Amaro
Eça de Queiroz, deixa de lado os finais felizes românticos e
engaja-se politicamente, num texto (que hoje seria explicito, quase ingênuo) de
crítica ao fator político imposto pela igreja e seus representantes, ao mesmo
tempo em que com maestria conduz uma história humana, de desejos e sua luta com
convenções e proibições sociais.
Para mim, o ponto mais interessante foi este segundo. Se o
envolvimento político do autor fica datado, baseado nas aspirações de uma
geração que já foram provadas na história (embora alguns teimosos ainda se
apeguem ao passado), a segunda fala da natureza humana, tema que está sempre
ali na esquina, faz parte da vida de todos. O próprio autor, após pesadas críticas à religião, coloca no final do livro o abade, personagem que redime a classe e mostra a importância de uma vida espiritual - mesmo que mantenha que a religião nem sempre leve a este objetivo.
Mais um belo exemplar de nossa literatura: escrito com
habilidade, com um ritmo bastante adequado, descrições só quando necessárias (e
nesses momentos são viscerais, deliciosas).
Frases selecionadas:
“A S. Joaneira esperava no alto da escada; uma criada
enfezada e sardenta, alumiava com um candeeiro de petróleo; e a figura da S.
Joaneira destacava plenamente na luz da parede caiada. Era gorda, alta, muito
branca, de aspecto pachorrento. Os seus olhos pretos tinham já em redor a pele
engelhada; os cabelos arrepiados, com um enfeite escarlate, eram já raros aos
cantos da testa e no começo da risca; mas percebiam-se uns braços rechonchudos,
um colo copioso e roupas asseadas.”
“O pároco fechou a porta do quarto. A roupa da cama
entreaberta, alva, tinha um bom cheiro de linho lavado. Por cima da cabeceira
pendia a gravura antiga dum Cristo crucificado. Amaro abriu o seu breviário,
ajoelhou aos pés da cama, persignou-se; mas estava fatigado, vinham-lhe grandes
bocejos; e então por cima, sobre o teto , através das orações rituais que
maquinalmente ia lendo, começou a sentir o tique-tique das botinas de Amélia e
o ruído das saias engomadas que ela sacudia ao despir-se.”
“Na sua cela, havia uma imagem da Virgem coroada de
estrelas, pousada sobre a esfera, com um olhar errante pela luz imortal,
calcando aos pés a serpente. Amaro voltava-se para ela como para um refúgio,
rezava-lhe a Salve-Rainha: mas, ficando a contemplar a litografia, esquecia a
santidade da Virgem, via apenas diante de si uma linda moça loura; amava-a;
suspirava, despindo-se olhava-a de revés lubricamente; e mesmo a sua
curiosidade ousava erguer as pregas castas da túnica azul da imagem e supor
formas, redondezas, uma carne branca...Julgava então ver os olhos do Tentador
luzir na escuridão do quarto; aspergia a cama de água benta; mas não se atrevia
a revelar estes delírios, no confessionário, ao domingo.”
“Amaro ouvia-a falar, com a cabeça baixa, olhando-a de lado;
a sua voz naquele silêncio dos campos parecia-lhe mais rica, mais doce; o grane
ar dava-lhe uma cor mais picante às faces; o seu olhar rebrilhava. Para saltar
umas lamas tinha apanhado o vestido; e a brancura da meia, que ele entreviu,
perturbou-o como um começo da sua nudez.”
“ – É natural, coitado – disse, já com a mão no fecho da
porta. Que queres tu? Ele tem para as mulheres, como homem, paixões e órgãos;
como confessor, a importância dum Deus. É evidente que há-de utilizar essa
importância para satisfazer essas paixões; e que há-de cobrir essa satisfação
natural com as aparências e com os pretextos do serviço divino... É natural.”
“Trinta em oito vezes de seguida recomeçara o rosário, e
sempre o saiote escarlate se interpunha entre ela e Nossa Senhora!...Então, desistira, de exausta,
de esfalfada. E imediatamente sentira dores vivas nas pernas, e tivera como uma
voz de dentro a dizer-lhe que era Nossa Senhora por vingança a espetar-lhe
alfinetes nas pernas...
O abade pulou:
- Oh minha
senhora!...
- Ai, não é tudo,
senhor abade!
Havia outro pecado que a torturava: quando rezava, às vezes,
sentia vir expectoração; e, tendo ainda o nome de Deus ou da Virgem na boca,
tinha de escarrar; ultimamente engolia o escarro, mas estivera pensando que o
nome de Deus ou da Virgem lhe descia de embrulhada para o estômago e se ia
misturar com as fezes! Que havia de fazer?”
“ – Aí tem o abade uma educação dominada inteiramente pelo
absurdo: resistência às mais justas solicitações da natureza, e resistência aos
mais elevados movimentos da razão. Preparar um padre é criar um monstro que
há-de passar a sua desgraçada existência numa batalha desesperada contra os
dois fatos irresistíveis do Universo – a força da Matéria e a força da Razão!
- Que está o senhor a
dizer? Exclamou assombrado o abade.
- Estou a dizer a
verdade. Em que consiste a educação dum sacerdote? Primo: em o preparar para o celibato e para a virgindade; isto é,
para a supressão violenta dos sentimentos mais naturais. Secundo: em evitar todo o conhecimento e toda a idéia que seja
capaz de abalar a fé católica; isto é, a supressão forçada do espírito de indagação
e de exame; portanto de toda a ciência real e humana...”
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